As Folhas Ardem

a poesia do mundo. o mundo da poesia. incêndios e queimadas.

José Miguel Silva | FALA O DIRECTOR-GERAL

FALA O DIRECTOR-GERAL

Caros accionistas, a eleição dos nossos candidatos
veio demonstrar, uma vez mais, que a democracia
funciona e nada temos a temer. Agora é atacar
as derradeiras guarnições de mais-valia (como fundos
de pensões e monopólios naturais), que a janela
desta crise é preciosa, mas não dura, se até o CEO
tem limites e o petróleo nos começa a falhar.

A classe média continua a pernear no tapete rolante
da dívida, mas os média têm feito uma excelente
cobertura e ninguém desconfia de nada – é dar-lhe
toda a corda de esperança que reclama, para que
no momento certo o alçapão se abra sem alarde
e suavemente nos livremos desta roda de bocas
inúteis, que já só atrasa o andamento da economia.

Resta o problema dos relapsos e dos enraivecidos,
que vociferam pelas ruas “não pagamos” e motim.
Mas são, convenhamos, conduzidos por gatinhos
escaldados, sem crédito nem guizos nem projecto
coerente. Nada que seduza o coração dos isolados,
como o provam as sondagens e o misto de admiração
e inveja que continuamos a despertar nas cobaias.

Mas nem tudo são rosas, cavalheiros, pois se o clima
emocional da populaça é tele-regulável, o mesmo
não se pode dizer da frente ecológica, onde poderosas
forças de bloqueio se concentram como gases deletérios,
esgotamentos, externalidades que ameaçam gravemente
o nosso modo de vida. Em poucas palavras: não cabe
mais ninguém na ratoeira do progresso industrial.

Sete mil milhões de bocas engodadas pelo isco
do consumo rivalizam por recursos limitados,
que pertencem por direito natural aos nossos netos.
Começou a grande dança de cadeiras, e nunca
como hoje a presciência valeu tanto no mercado
evolutivo. Felizmente, somos nós quem determina
quando a música termina e a corrida começa.

Temos na mão o queijo, a faca e o conto de fadas
da modernidade, temos por nós a confusão
do inimigo, o fantasma da desordem, a esperança
e o vazio dos desesperados, além da nova lei
de segurança interna. Assim, e embora seja cedo
para celebrar (pois a história, mesmo de trela
ao pescoço, não deixa de ser um animal imprevisível),

hão de concordar, cavalheiros, que as coisas estão
bem encarreiradas. Todavia, não podemos vacilar.
O capital unido jamais será vencido! Há que pôr
a compaixão na gaveta e no terreno uma vontade
de ferro, pois avizinha-se a batalha decisiva desta
guerra de classes. E, passada a turbulência, cá
estaremos, accionistas do futuro, para herdar a Terra.

José Miguel Silva, Le Monde Diplomatique – Edição Portuguesa, Janeiro 2014

Ilustração de André da Loba

Ilustração de André da Loba

Rui Caeiro | Um Gato no Inferno (quatro poemas e nota de leitura)

Refastelado no veludo negro
do inferno, um gato
espera por mim
*
Espera por mim, negro
e macio, confortável-
mente sentado à porta do inferno
*
Desde sempre à minha espera
aconchegado no veludo negro
do inferno
*
Resignadamente sentado
à porta do inferno
à espera de quê ou de quem
— ou de mim? — o gato

Há um longo poema contido neste livro, dividido em pequenas construções de três/quatro versos, funcionando como peças de dominó que, ligando-se entre si, se desdobram em formulações novas. O gato espera o homem que por ele se interroga sem cessar.

O gato desperta perguntas elementares, que se desenroscam em novas questões essenciais, primitivas, afastadas de razão ou metafísica (Para não pensar / excessivamente / passo a mão, devagar, / no seu dorso morno). Apenas o gozo de perguntar, que encontra resposta na temperatura, na macieza, no conforto, no desejo do gato; no que é primordial. Que as coisas do mundo ocorram e se convulsionem (sucedendo por Frielas ou por [Fernando] Pessoa) é, para o gato, para o homem, na tranquila incógnita que organiza o poema, indiferente.

Escrever simples não é fácil. Já que nos aborrecemos de vez com as tentativas sobre a forma haikai que abundam por aí, é dobrado o prazer de ler e interpretar (divagar sobre) os significados sugeridos pelo delicioso livro de Rui Caeiro.

Depois o prazer disto: os desenhos da Inês Caria (como este do extra-texto, que aqui se reproduz), os cadernos por abrir, o toque dos tipos, as gralhas rasuradas à mão pelo autor, o cólofon a informar: «Este livro é uma edição de autor, com arquitectura de Luís Gomes, foi composto em chumbo com caracteres Futura, por Eugénio Palma e impresso numa Minerva Heidelberg por António Trovão, em Lisboa no mês de Julho de 2013.»

CAEIRO, Rui, Um Gato no Inferno, Lisboa: Edição do Autor, Julho de 2013

Rui Caeiro | Um Gato no Inferno (ilustação de Inês Caria)

É quase noite — Beatriz Hierro Lopes

Esta escrita organiza-se na construção de uma memória, constitui-se meticuloso inventário íntimo. Ficciona o tempo para obter matéria narrativa. Recusando a recordação nostálgica, estabelece-se como trabalho de arqueologia: procura em camadas, até achar o que já foi ouvido, herdado, roubado, esquecido. Esta escrita faz-se e refaz-se contra a morte:

«Das fotografias antigas, o que de mais terrível fica é saber-se o fim.»

Narrar é produzir o real, narrar resgata, redime.

«chegar ao passado e dizer, à menina das tranças: não chore, nós gostamos tanto de si, e abraçá-la, ocupar o lugar de uma boneca feia que ela agarra e chamá-la ao ouvido: minha princesa

Beatriz Hierro Lopes, É quase noite, Lisboa: Averno, 2013.

(Apresentação do livro em Lisboa: sábado, dia 12 de Outubro, às 22 horas, livraria Paralelo W.)

Imagem

Hugo Milhanas Machado — «Uma pedra parecida» (cinco poemas e prefácio do livro)

(fotografia: «Sea's Ghost», )

(fotografia: «Sea’s Ghost», <http://triodante.deviantart.com/&gt;)

Segundo livro da chancela «do lado esquerdo», Uma pedra parecida surge, numa tiragem tão exígua como rara é a cintilação desta obra de Hugo Milhanas Machado, autor de trabalho poético já considerável e senhor de uma linguagem e voz tão próprias que se poderiam tomar por galhardias, facilidades ou divertimentos. Longe disso, como tentei enunciar no prefácio e, melhor que eu, de si mesma dá conta a obra do autor, que se contrói em refutação de aparente desembaraço. As fascinantes ocupações o livro são um desafio, desde logo no entendimento do jogo da sua sintaxe, linguagem, voz que se faz em si mesma, autor sem epigonismo. A título de divulgação e conhecimento, aqui se deixam os cinco primeiros poemas do livro, pertencentes ao corpo «viragens, entusiasmos», que inaugura a obra.

 

Atrás de imagem

Quando és tu e por trás

em fila os barcos

guardei fundo muito

tu e o mar aqui parados

Eu visto um agasalho

entrego abrigado o café

à boca e entusiasmo

contigo assim

*

Em estar aqui

Está aí um tempo que

nem deitados às dunas

corpos são grandes como foles

e ver neste ficar pesadão

O fado só pode ser isto

ver os outros a cantar

é o bater da luz

na gente lascada e doida de sal

Vestir um agasalho

chegados à frente

pôr mais um bonito

e ruço agasalho

*

A propósito de safios

Mais de manhã e apressando

tornam marítimos em pé traçado

e outras vezes são dedos e

são dois três quatro e meios dedos

nessa vez e para sempre

É de se perder dentro

como numa dessas muitas palavras

que de longe vemos montadas

abocanhado metade do corpo fora

em brutal fola de boca

E deve tudo deve ser

lancha e seda e o peixe

não tarda muito ali morto

e depois deitado à água

*

Frases

É o vento a comer mais

e uma flor que não dá a pôr

Um silêncio daqueles e à borda

onde braços e limo vêm arrimar

Vai bonito o que a gente diz

olha ali aquela terra mete pedra

Vai fundo repara o pé que

aqui ancora eu não saio daqui

E o azar era o recorte dos barcos

quando éramos mais

*

Os pavilhões

Sentar à praia em

dia nesta tarde que fresca

põe o corpo nos emblemas

toalha espelho o favo solto

Não é a mesa que escondida

é donde se te vê passar nem

o sol que em frente deve descer

alumia e fala noutras línguas

Resolvo o nó porque insisto

na dobra azul e amarela ao alto

que ali deve ser o tecto do barco

e desfraldada tanta confusão

Aparece giro meu nome dito por ti

«Uma pedra parecida» — capa

«Uma pedra parecida» — capa


(prefácio do livro, revisto para edição no blogue)

Perante a matéria-prima do trabalho poético que surge frente aos nossos olhos, não se afigura a possibilidade uma leitura limpa, completamente inocente, isenta de contaminações, salvaguardada de apropriações tendencialmente analíticas, de juízos valorativos.

Não há leituras ingénuas, nem elaborações do gosto específico por um livro, por um autor, em pleno gozo da liberdade. E, contudo, a escrita poética de Hugo Milhanas Machado convida-nos permanentemente ao abandono dos crivos analíticos, às medições, a um julgamento que envolva qualquer classificação categorizada, como aquelas que, agora, até os jornais de referência utilizam: bolas e estrelinhas vermelhas, valham-nos os céus.

Desde logo, a singularidade da voz poética do autor, já patente nas suas obras anteriores (particularmente em Entre o Malandro e o Trágico, Lisboa: «Sombra do Amor edições», 2009), conhece, neste seu novo livro, a expressão de uma identidade particularíssima, que se configura visível em duas vertentes, que devem ser identificadas e destacadas.

Por um lado, a destreza na elaboração de uma variação formal que separa os três corpos de poemas que compõem o livro, exercício que, paradoxalmente, reforça a unidade que o mesmo nos propõe; por outro, a desenvolta quebra das regras supostas de gerar aquilo a que chamaríamos o verso apurado. Estamos no domínio do espanto, da licença poética a que o autor se permite, liberdade maior da ars poetica. Versificação no limiar do surpreendente, sem falhas, desarmante, aquela que aqui encontramos. De que nos desarmam eles, os versos, as estrofes, os poemas de «Uma Pedra Parecida»? Das certezas da leitura confortável, da inclinação para o adquirido, da interrogação (por vezes perplexa) sobre a sua essencialidade.

É aqui que Hugo Milhanas Machado evidencia com maior relevo a originalidade da sua obra, rompendo exultantemente e com (aparente) agilidade as convenções da sintaxe (questão que chegou a ser inutilmente utilizada para debater os seus poemas).

Temeridade do autor? Ao lê-lo, percebe-se a deliberação tenaz, a mão e o ofício, a voz e uma lírica tão própria que requereria uma linguagem que lhe fosse inerente. É essa uma das maiores virtudes do livro e dos poemas que nele encontramos: a capacidade de criar uma formalização que serve a intencionalidade poética do autor como se a única possível fosse.

Que desígnio é este? Na primeira parte do tríptico, «VIRAGENS, ENTUSIASMOS », é toda a memória convocada que irrompe, celebrando o júbilo íntimo dos dias solares, dos elementos, da natureza e do corpo, num conjunto onde o campo da semântica se rarefaz para melhor dar lugar à enunciação de uma emocionalidade grandemente contida, ao ponto de se encobrir deliberadamente em pequenos episódios, passagens enunciadas como constatações, formulações que simulam acasos, pequenas contingências. Um jogo excepcionalmente visual ocorre e se estabelece na trama dos poemas; parada quase impressionista, permitindo, por vezes, a identificação do traço fino do real, outras largando grossas manchas de simulação. Minucioso trabalho, este; mas é outra a musicalidade que ouvimos: o poderoso apelo da memória em torno da alegria do corpo e da vida. Uma intensa digressão aos referentes de um tempo recente e não maculado ainda pela sombra do esquecimento. Poemas solares, portanto, tanto mais expressivos quanto o poeta se adianta a esconder-lhes as marcas. Poemas do eu em graça, aparentando distância, um pudor finamente urdido; mas que nos deixam todas as pontas por onde lhe pegar: a evidência da felicidade.

E é a memória nostálgica de um referente temporal feliz que se desenvolve na segunda parte, «DECORAÇÃO DE INTERIORES», não por acaso iniciada com o poema «Fim de férias». Um corpo de poemas onde o itinerário rumo à cidade, ao quotidiano, se sublima no acto da escrita como possibilidade de preservação, de redenção. A recusa de um trabalho de luto estabelece-se aqui, através de uma firme protecção do vivido, da obstinada fixação do real, essa passagem perdida, resgatada pelo modo como se vai «Desfazendo viagem»: [«Embrulhada / a mão alcança / as melhores palavras / como se em casa / passando por elas / e muito mordido / o fundo da esferográfica»]. Muito mordido o sujeito que muito morde a esferográfica. Não é sem esforço que guardamos os restos da memória exultante.

Memória recente, que convoca a memória antiga: a terceira parte, «20 E TANTAS BUCHAS COM PIRATAS» encaminha-nos para uma galeria de personagens vindas do lastro do universo das reminiscências do autor, homenagem aos homens e ao lugar com os quais e onde se conheceu o espanto da infância, agora cristalizada e brilhando na imagem dos outros, tão reais, tão ficcionados pelo tempo; figuras que adquirem, pela sua idiossincrasia, uma aura mítica, ganhando dimensão de grandeza, mesmo onde o mais raso e o mais elevado do humano se encontram, como no poema «Zé Mergulhão, Camarão»: [«Assim falando parece até / que são pedras grandalhonas / olha a separar o mar / e gastas as letras no verdete // É um nome pequenino / arrancado a navalha / e nestes dedos todos espatifados // tá claro que o amor é assim / cravado de algas»].

Aparentemente distanciado dos dois primeiros corpos de poemas, «20 E TANTAS BUCHAS COM PIRATAS » torna-se a marca de contraste, a procura mais longínqua, o teste das possibilidades de resgate, que permite ler a obra como um todo, na qual a preservação da memória é um trabalho primordial para a objectivação do seu desígnio.

A ultrapassadíssima questão da poesia como instância expressiva de um eu melancólico exposto no e ao mundo (mesmo que ao mundo interior) é totalmente estilhaçada na poesia de Hugo Milhanas Machado. Ao resgate do passado não corresponde uma epifania por algo perdido. Antes uma laboriosa e discretamente urdida tessitura de uma formulação tão pouco comum como incomum é a sua formalização: a possibilidade de um poema que guarde a felicidade. A exultante alegria de ter vivido muito; tão pouco ainda, perante o que virá.

Ao ler o autor, diziam-nos que, de um inscrito subtexto, emanava uma imensa ternura. Seja. Mas é da memória da existência feliz, e da sua celebração, que estes poemas nos falam. E batem muito forte, ondas na rocha. Que se saiba, não é proibida a felicidade na poesia; que se saiba, a poesia pode ter, como matéria, o real; que se saiba, a realidade, por vezes, acontece ser feliz. Num tempo em que as correntes, as tendências, as escolas e as capelas literárias tendem a desaparecer e os poetas ascendem, autonomizados e livres do peso dos mestres e do lastro dos epígonos; num tempo, coincidente com a viragem do século, muito fértil no que à poesia diz respeito, a marca distintiva e a potência da voz poética de Hugo Milhanas Machado é esta: o elementar, firme, despretensioso labor de desconstruir a língua para refazer uma sintaxe ao serviço de um território seu, no qual pode, ele mesmo, soltar uma gargalhada. Com um verso. Com a vida.

Hugo Milhanas Machado

Hugo Milhanas Machado

Bibliografia de Hugo Milhanas Machado:

Poema em forma de nuvem – Torres Novas, Ed. Gama, 2005

Masquerade – Lisboa, Sombra do Amor, 2006

Clave do mundo – Lisboa, Sombra do Amor, 2007

Entre o malandro e o trágico – Lisboa, Sombra do Amor, 2009

As junções – Lisboa, Ed. Artefacto, 2010

Buchas – plaquette, Lisboa, ed. autor, 2010

Folas – plaquette, Salamanca, ed. autor, 2011

Plato chico – plaquette, Valencia, ed. autor, 2012

Parrillada – plaquette, Morille, ed. autor, 2012

Orla – plaquette, Salamanca, ed. autor, 2012

Pancartas – ebook, Salamanca, 2012

Uma pedra parecida – Coimbra, Do Lado Esquerdo, 2013

(Os 100 exemplares do livro devem esgotar rapidamente. Mas vale a pena tentar encomendá-lo aqui, recomendação para a qual não fui, evidentemente, «encomendado».)

Ruy Belo — Missa de Aniversário

Há um ano que os teus gestos andam 

ausentes da nossa freguesia 

Tu que eras destes campos 

onde de novo a seara amadurece 

donde és hoje? 

Que nome novo tens? 

Haverá mais singular fim de semana 

do que um sábado assim que nunca mais tem fim? 

Que ocupação é agora a tua 

que tens todo o tempo livre à tua frente? 

Que passos te levarão atrás 

do arrulhar da pomba em nossos céus? 

Que te acontece que não mais fizeste anos 

embora a mesa posta continue à tua espera 

e lá fora na estrada as amoreiras tenham outra vez 

                                                                  florido? 

 

Era esta a voz dele assim é que falava 

dizem agora as giestas desta sua terra 

que o viram passar nos caminhos da infância 

junto ao primeiro voo das perdizes 

 

Já só na gravata te levamos morto àqueles caminhos 

onde deixaste a marca dos teus pés 

Apenas na gravata. A tua morte 

deixou de nos vestir completamente 

No verão em que partiste bem me lembro 

pensei coisas profundas 

É de novo verão. Cada vez tens menos lugar 

neste canto de nós donde anualmente 

te havemos piedosamente de desenterrar 

Até à morte da morte 

 

Belo, Ruy, «Obra Poética de Ruy Belo — volume 1, livro “Aquele Grande Rio Eufrates”», Lisboa: Editorial Presença, 1981

Duarte Belo— «páginas literárias de jornais, coleccionadas por Ruy Belo» © Duarte Belo (D.R.).

Duarte Belo— «páginas literárias de jornais, coleccionadas por Ruy Belo» © Duarte Belo (D.R.).


• Uma boa nota de leitura deste poema pode ser encontrada aqui.

• Fotografia: Duarte Belo, «O Núcleo da Claridade — fotografias sobre “objectos directamente ligados à vivência de meu pai (…)”, «páginas literárias de jornais, coleccionadas por Ruy Belo»

 

 

 

 

São Valentim, o grande embusteiro

Raios abrasem o dia de São Valentim! A começar pelo bispo que lhe deu o nome: desde 1969 nem a Igreja Católica o reconhece, à falta de provas credíveis da sua lenda ou mesmo da sua existência. Embirro, porque tenho o Santo António, caso precisasse de um santinho que, por decreto de calendário, me levasse o coração a bater mais estremecido. Que não é o caso, que o coração não precisa de datas, como as datas não têm coração, o meu Banco que o diga. Que do Valentim façam festarola anglo-saxónica a escorrer para o nosso torrão, a pingar para o negócio, é dupla injúria. Meu pobre e desancado coração, que batas ao sabor dos dias, sem hora marcada; meu bom coração constante, pulsa-me aos minutos certos da incerteza; meu coração comovido de taquicardíaca beleza, recorda-te da mais bonita quadra popular que já li, escrita em letras azuis num prato de cerâmica rasca, numa tasca da EN1.

Sino, Coração da aldeia

Coração, Sino da gente

Um a sentir quando bate

O outro a bater quando sente

Perceberás, Valentim, que és detalhe de calendário, cúpido cupido sem préstimo que não seja enlevar basbaques? Pois és.

 (fotografia:«St. Valentine's Legacy», via Deviantart, (D.R.)

(fotografia:«St. Valentine’s Legacy», via Deviantart, (D.R.)

Beatriz Hierro Lopes — «nas ruas» (texto inédito e nota de leitura)

Nas ruas há pássaros que me cobrem o caminho até casa. Fileiras de peitos brancos, de asas partidas, alimentando o alcatrão. Sem luz, são fios desavindos de algodão que a minha mãe alinha ao tranquilizar as noites no colo. Tocam-me. Não fogem do chão: eles lá em baixo e eu cá em cima; são ruas sobre ruas, que ditam a estratégia do espaço entre as avenidas. A morte dos pequenos bichos, dos pássaros, dos gatos, entupindo os escoadouros, mortes que são a resistência mais silenciosa que faz transbordar as ruas. E elas, as ruas, são fios de cabelo negro, convergindo até chegarem à altura das clarabóias, a testa deste mundo visto de cima. Que pedem mais luz. O interior de um corpo, visto de cima, guarda a escuridão das noites, antes que as clarabóias lhes purifiquem as articulações que garantem a altura. A casa é o interior do corpo no corpo. Um negativo em miniatura da imagem do mundo, à semelhança das casas de bonecas. Como todas, também esta contradiz a noite, usando um exército de funcionários públicos caiados a verde musgo, em cujas chagas de ferro a luz eléctrica se reflecte, os mais elevados entre o mobiliário urbano. Junto aos pontos de vigia, que tanto lhes imitam a cor como adoptam o beijo vermelho em que os namorados se encostam, tentando ver entre os reflexos o rosto que se adianta contra o seu. Que um beijo citadino é um beijo do mundo, do metro, apenas contado aos ouvidos das janelas, das portas, das grades, das clarabóias. Resta, da segurança da rua, a palidez monótona e geométrica com que se alinham regras de salvaguarda humana: passadeiras que não confundem homem por pássaro ou gato e que, por isso, fecham os olhos ao instante rotativo em que o corpo menor é moído estrada fora. Haverá mortos nos nossos jardins, e beijos que, à falta de destinatário, se cristalizam em magnólias e camélias tão alvas como a recriação do mundo em pés de raiz; são árvores, monstros protestando contra o contrato do tempo. Ninguém sabe das árvores que usam das raízes como nervos, uma espécie de corpo celeste desafiando a elasticidade da terra nos jardins onde se enterra a infância das bicicletas. Hábitos dos velhos sobre as mesas de jogo, em que as sombras das folhas proporcionam escuridão que chegue às unhas das mulheres que choram ali. As putas nunca foram crianças, apenas as bicicletas de velocidade sepultada entre as raízes das árvores. É fácil vê-las, junto ao lago, fechando os olhos gira ainda uma roda de metal que alguém pintou de vermelho para condizer com os bancos do jardim. Embora a cor se espalhe, com maior urgência, entre marcos de correio e postos telefónicos de graça londrina; outras vezes, porém, encostados aos caixotes de lixo, há demasiados sapatos vermelhos. De agulha ou rasos, elevando tornozelos, troncos, joelhos, bustos, rostos, ou alinhando o passo com as linhas do diário; mas vermelho, sempre vermelho. Todas as mulheres levam vermelho aos pés. Imitam as rodas de bicicleta ceifando invernos do chão. Os homens são negros, sapatos polidos pelo engraxador da avenida. Uns e outros espantam a morte nos intervalos do fumo, todos tem casacos compridos para que não se veja no corpo peito de pássaro ferido. Trazem asas partidas no rosto, penas antigas de pai ou de mãe ocupando o lugar das pestanas, olhos da cor dos botões das camisolas de outono que levavam à escola, mãos de lápis para as aulas de matemática, quando toda a matemática que lhes resta é a memória pronta dos vagares entre os horários dos comboios, do metro, dos autocarros; onde vestem as rugas dos domingos de seus avós; ou os maiores desgostos com que lavram as rotas à cidade, que se molda pelo peso das pequenas multidões que lhes imitam a respiração. A cidade é um enfisema pulmonar. Velhos, velhas, doentes, putas, crianças por morrer por suas mães não terem tido esperança de os deitar à marinha mal nascessem. Como pode esta cidade tão negra, tão vermelha, ainda assim abrir avenidas no céu e provocar derrocadas de nuvens sobre um rio? Como pode imitar o som da terra numa concertina, que ecoa desde santa catarina até à margem, e acordar veleiros fantasma de quando o rio era um peito mais habitado que todo este silêncio, em que apenas a solidão serve de moeda de troca para uma cama menos vazia? Ao longo de todo o trajecto há pássaros caídos. E este som, só meu, enchendo as ruas por onde passo com as palavras que não escrevi e que temo nunca escrever. Casa será sempre este espaço menor em que dou outros nomes à cidade, não vá a manhã surpreender-me e o espelho contar-me o número de paralelos com que o meu rosto foi reconstruído a partir desta noite.

«oporto» buri, via Deviantart (D.R.)

«oporto» buri, via Deviantart (D.R.)

Não acidentalmente, o texto que aqui se dá a conhecer, «das ruas», inicia-se com a frase: «Nas ruas há pássaros que me cobrem o caminho até casa». Encontramos aqui os elementos simbólicos fundamentais na composição: a rua, os materiais urbanos, os animais, os caminhos; o eu. Elementos de significação que se sucedem em personificações, metamorfoses, reificações, numa sequência narrativa em que a imagética se alarga, imensa, espalhando-se como um rio (para o rio) através de poderosas representações encadeadas que ampliam os campos de significação em contiguidades e analepses, numa tessitura milimetricamente urdida. O texto revela  um programa interno: a assunção da casa como a cidade, da cidade como uma extensão do eu ou, em sentido inverso, do eu como hipótese da cidade. É uma cidade doente: «A cidade é um enfisema pulmonar», de pessoas doentes: «todos têm casacos compridos para que não se veja no corpo peito de pássaro ferido»; uma cidade onde se adoece. Como um enfisema (essa lenta forma de ir sufocando), não há salvação perante esta eminência de morte. Não é de um queixume, de um lamento ou mesmo de uma  elegia que aqui se trata, mas de um vaticínio de morte: «A morte dos pequenos bichos, dos pássaros, dos gatos, entupindo os escoadouros, mortes que são a resistência mais silenciosa que faz transbordar as ruas». A ideia de resistência é consubstanciada no anseio da verticalidade da luz contra o negrume (percebe-se, assim, a importância dada aos altos candeeiros das ruas), na arquitectura erguida das casas por cair, das clarabóias que, organizando a luz como uma armadura, evitassem a derrocada do eu, o ruir da casa, a morte da cidade: «A casa é o interior do corpo no corpo». A esta quieta resistência se agarra o texto: «Resta, da segurança da rua, a palidez monótona e geométrica com que se alinham regras de salvaguarda humana». Uma contraposição perplexa: «Como pode esta cidade tão negra, tão vermelha, ainda assim abrir avenidas no céu e provocar derrocadas de nuvens sobre um rio?». Uma salvação improvável: «Casa será sempre este espaço menor em que dou outros nomes à cidade, não vá a manhã surpreender-me e o espelho contar-me o número de paralelos com que o meu rosto foi reconstruído a partir desta noite.» A casa como metáfora da cidade; esta como metáfora do eu. Uma identificação profunda produz-se, como um desejo intenso, nesta linha estreita à beira do abismo das águas do rio.

De Beatriz Hierro Lopes são conhecidos os textos curtos que publica no seu blogue ao longe todos são pedras. Textos de múltiplas temáticas, diversas formalizações, mas sempre com uma voz tão própria na cadência, no ritmo, na riquíssima paleta imagética (tão cromática); na imensidão de recursos estilísticos e na singularidade da escrita, que mal esconde um mundo de feroz confronto com a temática da perda. E é nesse domínio que a escrita de Beatriz Hierro Lopes não encontra paralelo nos autores mais recentes.

«Do Lado Esquerdo» — nasceu hoje uma nova editora de poesia, com novo livro de Maria Sousa.

Do Lado Esquerdo

Do Lado Esquerdo


Nasceu hoje uma nova editora de poesia, em Coimbra. «Do Lado Esquerdo» é iniciativa de Maria Sousa e de Nuno Abrantes, co-editores da revista digital a sul de nenhum norteque já contabiliza sete edições. O nome da editora, certamente inspirado no poema de Carlos de Oliveira «sobre lado esquerdo», revela apropriadamente a intensidade afectiva que os seus autores empregam na actividade de editores. Apresenta, igualmente, um jogo de sentidos, tal como o poema de Carlos de Oliveira o fazia, em tempos muito duros de luta contra a censura (mas também não o serão estes, nomeadamente no que à censura económica diz respeito?).

É justamente com um título de Maria Sousa, o livro Mulher Ilustrada, que se inaugura o catálogo da editora. Que o editor assuma igualmente o papel de autor é tradição antiga, nada a obstar. Mesmo porque se aguardava, já, um novo título da autora, depois de Exercícios para endurecimento de lágrimas, («Edições Língua Morta», 2010). Maria Sousa, que se define de forma bem original, em nota biográfica elaborada para a sua apresentação no Ciclo de Leituras Encenadas «Da Voz Humana», que teve lugar no ano transacto, na companhia «Escola de Mulheres — Oficina de Teatro». Escreve a autora: «Coisas que me fazem bater depressa o coração* O Outono, o cheiro da terra molhada, o som das ondas, o estalar das folhas secas, a minha família, os meus amigos, as janelas, a luz a atravessar cortinas brancas, nuvens, as canções do Tom Waits, livrarias antigas, livros e caderninhos, um olhar, um rir, o som da chuva, os poemas da Alejandra Pizarnik, os da Anne Sexton, viajar, despedidas, ouvir poemas meus em lituano, falar em público, cafés vazios, cigarros. E melancolia. *(plágio descarado ao titulo de um um texto da Sei Shonagon)». Acrescenta-se que Maria Sousa participou em várias revistas literárias (Criatura, Sítio, Saudade, Umbigo) e num Seminário de tradução literária organizado pela L.A.F. (Literature Across Frontiers); e que é autora de um dos mais antigos e prestigiados blogues relacionados com a poesia: «there’s only 1 alice»

Sobre o primeiro livro, e já com alguns dos poemas que compõem o agora inaugural Mulher Ilustrada, escrevi, na ocasião, que estávamos perante uma autora que trava  uma duríssima luta contra a ausência, revelada no silêncio, na impossibilidade de dizer; a tremenda prova dessa ausência nos lugares habitáveis, no quotidiano — a casa, a cama, o corpo, a voz — lides íntimas que se travam apelando à memória, inevitavelmente sem resposta, que esta se esconde num esquecimento tornado apaziguador, resgatado pela possibilidade de uma sílaba, da palavra escrita; trabalho de equilíbrio do sentimento de si travado no fio de um arame. Na poesia de Maria Sousa o eu é um outro (uma outra), à procura do retorno ao eu outro. Poemas onde se experimenta um incessante labor de resgate, ainda que, para tal, se organize, sem concessões, no largo tempo espectral da noite, um movimento incessante de contenção. É como engolir um grito.

Mulher Ilustrada acentua claramente a voz da autora, ampliando os lugares simbólicos, refazendo e renovando a semântica que lhe é peculiar, acentuando de forma mais elaborada, num trabalho incessante de depuração, onde a ironia e a nostalgia estão presentes, numa permanente elegia de um eu idealizado, perdido no confronto com a sua realidade íntima.

O resultado merece a maior atenção para uma obra em sólida construção, já em plena maturidade, que se ergue com um saber laboriosamente tecido.
 

 

«Mulher Ilustrada», de Maria Sousa (capa)

«Mulher Ilustrada», de Maria Sousa (capa)

Aqui se deixa o díptico que encerra Mulher Ilustrada, livro que pode ser adquirido nos lugares indicados na página da editora «Do Lado Esquerdo», na rede social «Facebook».

I

vejo-te na soleira da porta

hesitas. em cena apenas estou eu

penso em mudar-me

mas, entre erros e desculpas

falta-me espaço

 

se contares histórias serão daquelas que

ninguém quer ouvir

relatos de passeios de domingo onde há sempre ruínas

sim, restaram apenas ruínas escavadas no interior dos olhos

 

II

entras, não tens medo

rodeado de olhares com sono que ainda não sabem

que as palavras são sempre as mesmas

(uma espécie de cerimónia onde te repetes para evitar a morte)

 

mentimos os dois sobre uma história feita de fragmentos

 

dizes que nem sempre o guião é o mesmo

mas repetes-me o teu monólogo ao ouvido

 

“deixa-me sair” vou abandonar a personagem

que balança no vazio

 

última tentativa: observo-te e tu já não me vês

conheces-me tão pouco, não, isto…

isto não é um dueto, é um duelo

 

friamente o silêncio cai sobre nós

não há vozes nem adereços

(a cena está vazia)

 

há apenas uma cortina de vento onde as palavras

nunca se moldaram

 

Sousa, Maria, Mulher Ilustrada, Coimbra: «Do Lado Esquerdo», Janeiro de 2013

 

João Miguel Fernandes Jorge — O Melro de Mazagão (poema e apontamento)

Era um corpo feito às mãos caía-lhe pó dos dedos

era dos meus amigos o mais propenso à ilusão.

E eu estava ali quieto sobre a casa, a alma

pode ser muitas vezes uma pedra

eu estava ali quieto isto é o mais importante: era

um corpo feito às mãos.

Ia por um caminho de palmeiras

aquele que procura o meio-dia e o encontra

era um homem entre uma rua da Nazareth e a rua do Celeiro

de espírito orgulhoso: esses tempos já lá vão

se quisermos aprender alguma coisa

dos pedreiros escrevendo a estrela e o

crescente

Mazagão é a miragem de portos barcos e reinos.

Para que serve? Preferia ficar a bordo onde podia trabalhar

sem interrupções e onde várias vezes me senti inspirado

como nunca tinha estado antes nem voltei a estar depois.


Eu por mim sou assim quando chego aos portos embarco.

E sonho um país onde nunca acabam as casas

porque as casas são para não ter fim: «já não

tenho pressa agora já não quero chegar a lado algum».

e que mais hei-de fazer deste terreiro de favas e papoilas?

A matéria não podia já mover-se por si própria ou

se movia ao acaso. Era uma ponte em vão.


Era um mar de dragões e solitários espíritos esse

onde navega o melro de Mazagão

as coisas que se transformam em função das suas paixões,

um melro canta sempre de determinada maneira

avisando contra toda a espécie e fortuitos acontecimentos.

Era da família dos amarílis

e se o não era ele, era o seu canto.


Pois quando volvemos o olhar enfrentando este terror

insinuando a dúvida pela fugaz economia

e dizendo ecce ancillla domini

semelhante ao desprezo de Platão,

disto estou certo: era um corpo feito às mãos.

Jorge, João Miguel Fernandes, Obra Poética Volume 3, Lisboa: Editorial Presença, 1988

dante gabriel rossetti «ecce ancilla domini!» Óleo sobre tela montado em painel, 41.9 x 72.7 cm. Tate Gallery, Londres, Reino Unido

Dante Gabriel Rossetti «ecce ancilla domini!» Óleo sobre tela montado em painel, 41.9 x 72.7 cm. Tate Gallery, Londres, Reino Unido

Voltamos ao Direito de Mentir (1978, 7.º livro do autor) e, talvez por acidente, ao quase caricato episódio que o autor relata, na reedição da Obra Poética, da Editorial Presença: «no dia em que ficou pronto e em que fui à editora buscar o primeiro exemplar, ao abri-lo, vi com grande espanto que os poemas não eram os que eu tinha escrito. O Direito de Mentir trazia o miolo do livro Voo Doméstico de António Manuel Couto Viana. Houve que proceder à sua troca, pois os tão conseguidos poemas de Couto Viana sobre Luanda e o fim do Império não me pertenciam. Tudo acontecia como uma pequena ironia movida no cumprimento do título, já por si tomado a partir do texto «Sobre um pretendido direito de mentir por humanidade», de Kant.». Ironia que tem, como ponto de legitimação uma verdade intrínseca, íntima, que atravessa o poema e o livro como evidência e proclamação do olhar do autor perante os acontecimentos do mundo, permitindo-lhe o Direito de Mentir, de afirmar a sua própria percepção do real contra a «verdade» das evidências (aquilo que, carecendo de demonstração, se configura como revelação: «ecce ancilla domine» Lc: 1,38). Joaquim Manuel Magalhães escreverá, a propósito do livro, ser este: «expressão duma paz contemplativa de sucessivas paisagens perturbadas (…) num plano que não é o da confissão linear de sentimentos, mas que é duma afirmação emocional tensa, ora carregada de paixão, ora de euforia irónica, ora de puro registo sensorial.» (Magalhães, Joaquim Manuel — Os Dois Crepúsculos, Lisboa: «Na Regra do Jogo», 1981, p. 243).

[Nota: Este poema teve uma publicação prévia na revista «Raiz & Utopia», números 3-4, Outono/Inverno de 1977.]

Nuno Brito — «Duplo Poço». Excerto e Nota de Leitura.

Nuno Brito

Nuno Brito


(excerto)


OUTRA FORMA DE MENTIR

I. 

Sou a verdade, uso uma mini-saia vermelha,

Vejo os homens masturbarem-se nas sua varandas enquanto me olham,

passo nas ruas de Alexandria, Berlim, Tóquio, Budapeste,

Bernini esculpiu-me, Whitman descreveu-me

mas nunca nenhum homem me possuiu

Por mim correrão futuros antiquários ainda por nascer

Afundo-os de desejos, mutilo-lhes os sonhos

Sou múltipla e tudo acendo sobre a forma de calor,

Quem tem medo está mais próximo de mim, estou na boca dos amantes,

Nos seus ternos abraços

II. 

A minha visão é fragmentada de tanto olhar para o sol,

um fabricante de sinos do futuro, também ele cego,

mergulha dentro de mim e badala como do fundo de um lago suíço,

não tenho sono, nunca dormi até hoje,

ouço o badalar link link link link,

subaquático e triste:

Todos os comboios correm até mim,

velo o sono de um faroleiro com medo do escuro,

teço-lhe os sonhos de fios dourados,

puxo as extremidades para o centro da alma e sento-me a chorar,

também eu tenho medo do escuro e me deito à sombra

as cidades possuem o céu,

o céu possui a música

e a música possui-me a mim,

sou todas as viagens, a meus pés construíram Tróia,

os semi-deuses esculpiram Cápri dos meus joelhos —

A amnésia beijou-me a boca;

O futuro líquido na forma de dois joga pólo aquático consigo mesmo,

tudo é um, tudo está condenado a ser um,

criei a poesia, teço todas as narrativas,

mergulho em todas as prosas,

todas as ficções me atravessam a nuca,

de um ao outro lado um comboio apita, um rio passa,

acorda um gato em queda,

os homens têm caminho à sua frente

e bebem o caminho, porque têm sede e o futuro é de beber,

as memórias também são de beber, o amor é líquido,

apesar de não existir também eu bebo o caminho:

Nado dentro de todos os homens;

Não penso, sinto, não corro, minto.

(Duplo Poço, pp. — 25/26)

«Duplo Poço» — Nuno Brito

«Duplo Poço» — Nuno Brito


(nota de leitura)

Ao ler o terceiro livro do Nuno Brito, encontra-se, desde logo, um conjunto bastante complexo de meios profusos no processo de formalização da sua obra. Entre eles é particularmente nítida, porque se destaca como constante e deliberada, a utilização das repetições, das consecutividades, aquilo que o Vasco Graça Moura chamou «automatismos conducentes à fragmentação» e associou ao surrealismo, a propósito da obra de Nuno Brito, noção essa que não se afigura excepcionalmente feliz.

Cremos que, preferencialmente a automatismos, poderíamos falar de consecutividades e repetições. Sabêmo-lo desde o corpo teórico da Psicanálise (e recusa-se uma leitura de Duplo Poço à luz de semelhante grelha), que aquelas não são meras reproduções invariáveis de actos, palavras, ideias… Produzem serializações, serializações estas com um referente sempre em movimento, a partir do lugar e do contexto da sua enunciação no corpo do texto, produzindo significados novos, no caso vertente causadores de estranheza, recontextualização, associações inesperadas e poderosas, causadoras imediatas do espanto. Como se de uma hiper-consciência se tratasse, capaz de se traduzir em matéria poética.

Encontra-se, neste livro uma escrita em transe, em trânsito entre o não consciente e o consciente, que opera um fabuloso movimento de  revelação e preenchimento, o contrário da ideia de fragmentação, já aventada a propósito da escrita de Nuno Brito. Quando o autor escreve:

«A Via Láctea brinca, como se fosse um menino… A história foge para dentro dos búzios. A erosão rói devagar os pulsos da solidão — Ela joga Tetris sozinha — com a boca cheia de calmantes (…) A erosão rói devagar os pulsos da solidão.»

Não são fragmentos ou associações livres que encontramos, mas inesperadas ligações imagéticas que explodem no texto. Duas formalizações sintéticas (entre muitas outras que se poderiam isolar) posicionam a obra perante o leitor, abrindo-se em múltiplas leituras:

«Como se fosse um rato. A poesia persegue os balões de hélio, a gravidade puxa-a para a terra, mas há extremidades finas, onde não há segurança, a cerâmica sigilata esconde-se no chão» (…) «Por baixo a água quente, que vem quase do centro da terra.»

É como se o autor partisse do Universo (que é um descomunal vazio preenchido), e chegasse ao âmago, ao centro da terra, ao centro do corpo (com transitividade de ida e volta). E, nesse movimento, persegue o preenchimento feérico de um vazio primordial. Detenhamo-nos neste conceito de vazio:

Percebendo o universo como a totalidade (e toda obra de arte é uma totalidade), o que poderemos ver fora dele? Se deixar entrar e sair o vazio é a função de do vazamento e preenchimento, então o universo pode comparar-se a um completude que é um todo contextual de si mesmo.

Nuno Brito refere, explicitamente, as «paredes do Universo», ou seja, espelha uma integralidade cujo exterior é seu próprio vazio interno; na escrita do Nuno Brito, os limites do vazio, ao contrário de dividirem o que é exterior do que é interno, conduzem o que é externo para dentro do que se acha dentro.

E é esta deslocação que se materializa em Duplo Poço. O preenchimento, a incrível aventura de materializar o vazio.

Uma procura explosiva de corporalização, por meios que só o autor conhece e pertencem à sua violenta liberdade poética:

Este movimento é trabalhado, em estado de pura fruição, apagando o autor a sua própria identidade enquanto um Eu (que aqui surge multiplicado, de resto, em vozes). Torna-se, o autor, numa espécie de mediador entre o mistério do cósmico e o mistério do ovo, movimento que vai do primordialmente mundo ao primordialmente humano.

Em Duplo Poço, Nuno Brito fá-lo de forma quase oracular — e não é por acaso que Cassandra é, talvez, a persona que mais se faz sentir significantemente na obra.

O autor, voluntariamente afastado do centro do texto, é o agente que detecta, reformula e difunde brilhantemente (no sentido da irradiação) uma nebulosa teia de matéria que vai encher o vazio de sentidos.

Não é concedida ao livro uma programática explícita; antes a possibilidade para que os múltiplos significados, imagens e ideias que poeticamente congrega se espalhem, disseminem, num poderoso derrame misterioso, por vezes obscuro, insondável. E, em consequência, marcado pela possibilidade da luz.

Não, não é de forma cómica que assim labora Nuno Brito, e de novo se contrariam algumas ideias formuladas a propósito da escrita do autor. Não se sentem marcas de amargura, ironia ou tristeza em Duplo Poço. Pelo contrário.

Significa isto que é patente o quanto Nuno Brito se diverte. Sente-se, em cada texto, em cada frase, em cada imagem, o prazer de brincar. Jogar aos dados com o universo e o leite materno, é coisa séria demais para que nela não se encontre, desde a primeira página, o enorme gozo de um criador que tem a rara faculdade de ouvir as vozes, os sinais, as cores, os sons que depois multiplica e reorganiza de forma intensamente poética.

Embora de forma redutora, poderíamos segmentar: há quem reduza voluntariamente o léxico, os significados, as imagens, procurando a depuração, na qual a forma se submete aos significados; há quem, pelo contrário, amplie, expanda a pluralidade semântica através de recursos lexicais e de estilo.

Em Duplo Poço, pelo contrário, o autor parte de um léxico e linguagem opulentos, joga com recursos estilísticos de grande diversidade e explode os campos semânticos, criando uma imagética riquíssima, muito além da produção de meros efeitos de surpresa: é de revelação e preenchimento que aqui se trata. E há toda uma linha que atravessa esta obra: sente-se que, (e inevitavelmente só poderia ser) é escrita em estado de júbilo.

«Qualquer gesto humano me excita violentamente, amo tudo quanto flui», escreve o Nuno, que acrescenta, para não deixar dúvidas:

«a literatura (a primeira morte) só serve para unir — os fios que usa são dourados»

A profunda riqueza de ouvir, ver, sentir e, seguidamente, reformular em abundância a riqueza associativa da escrita atinge, por vezes, em Nuno Brito, os limites de um entendimento racional do que está escrito, por parte de quem o lê (inferência a partir da experiência pessoal, das leituras feitas, refeitas).

Mas o que está inscrito coloca a questão da incorporação e investimento (preenchimento) do autor e da apropriação do leitor. Porque, muitas vezes, não apreendemos o que quer exactamente o autor dizer, mas experimentamos, de forma intensa, o que ele nos está a dizer; ou seja, atinge o (nosso) próprio inconsciente. Como quando escreve:

«O homem não legitima, a luz legitima»

Isto sente-se, mais do que se entende no plano racional ou mesmo emocional.

Desta forma o autor despe-se deliberadamente do papel de produtor e caucionador da sua obra, surgindo a mesma como um reflexo brutalmente multiplicado da luz (palavra nuclear para a compreensão da obra) que aquele ele recebe, capta e dissemina.

(Evidentemente não se trata de uma espécie de augure que descobre nas entranhas das galinhas os mistérios da natureza humana e responde pelo Universo.)

Utilizando formalizações várias, que se entrecruzam, como a narrativa,  textos de pendor quase ensaístico (um deliberadíssimo logro, ardilosamente forjado), escrevendo muitas vezes num registo aparentemente onírico, Nuno Brito domina os processos que conduzem à sua ars poetica.

Não parecem subsistir dúvidas quanto a este domínio integral da obra por parte do autor. O que se afigura notável é a agilidade com que o emprega e o modo como o faz surgir, de forma aparentemente compulsiva, sendo a destreza de recursos uma quase evidência. Quase.

Estabelecendo, por intermédio de pares semânticos que são antinomias arquetípicas, dualidades primitivas, nelas e na sua relação dinâmica começa a revelar-se o programa implícito da obra, uma unificação dos opostos, poços invertidos que a si mesmos se enchendo, se vazam:

a memória / o esquecimento

o passado / o futuro

o sexo / a morte

o feminino / o masculino

De todos estas antinomias muito haveria a dizer, mas centremo-nos nesta última:

Que o autor estabelece uma ordem hierárquica na qual se encontra uma clara predominância do feminino como o referente matricial revela-se claro e axial na obra. O feminino é diacrónico, é Deus, é o universo, o corpo, o lugar da apaziguamento. O vazio, o duplo poço a ser preenchido. O leite é um símbolo recorrente ao longo deste livro (muitas vezes surgindo como leite condensado, o que nos propõe alguns indícios: a infância, a doçura, a espessura, o sémen).

«A realidade amamenta-se da ficção (a primeira mãe)

bebe do seu leite gordo e quente

um leite que sabe a calma»

O masculino surge-nos, por outro lado, como a presença de uma possibilidade efémera de luz ofuscante, e o seu símbolo maior, em comparação com o leite, é o muito fálico farol, ocorrência sincrónica e fenómeno que permite o vislumbre da luz que guia no sentido do encontro, da fusão.

«A literatura só pode ser União»

Regressemos à questão que nos é recordada pela frase «O homem não legitima, a luz legitima». Que legitimidade é esta? A procura de uma união; a demanda de uma ordem que a poética ambiciona encontrar e estabelecer.

Esta união tem uma origem claramente pulsional, erótica. No livro multiplicam-se um conjunto de repetições e variações em torno do tema orgástico, do vir-se. Citemos duas:

«Os louva-a-deus fêmeas arrancam a cabeça do macho durante o sexo, no exacto momento em que este se está a vir. As ceifeiras colhem o trigo e riem-se. O futuro vem-se dentro da memória.»

«Está-se a vir: A amnésia está por cima, possuída de um prazer extremo — espeta-lhe a faca nas costas. O tempo pára…

o seu sexo incha de prazer»

Analiticamente, o prazer sexual é um momento enunciador do desencontro, encontro com o fantasma da morte: a minha fantasia, aquela que me faz gozar, não é a do outro. Há um desencontro incontornável, gerador do medo, causador de uma procura incessante, repetida, consecutiva, nunca terminada, uma luta contra o esquecimento do outro:

«A amnésia mete uma estrela-do-mar entre as pernas

O seu sexo sabe a mar,

A amnésia mete a noite entre as pernas

O seu sexo sabe a chuva de verão»

O orgasmo, o vir-se, e a ele volto dada a importância e frequência da sua ocorrência na essencialidade dos textos, é, neste trabalho que procura uma ordem, uma unificação que conferirá a calma, uma peculiar forma de paz, espelhado como cristalização do tempo. Instaura-se, desta forma o jogo entre medo/morte e salvação/vida.

O que encontramos, em Duplo Poço, como  uma possibilidade de programática última, vem da esfera do desejo. A gloriosa, cósmica tarefa de preenchimento do Vazio.

E é o poeta quem nos dá as pistas, as linhas possíveis do seu acto tremendo:

«A literatura só pode ser União»

«O amor é como carne»

«Só o amor permite ver de cima»

«O Riso é o Gerador Único do Universo»

«Só o Riso é Deus»

O desejo de unificação através do riso, da alegria, do júbilo. O entendimento da origem do ínfimo e do infinito como um sopro de amor. A escrita, o trabalho poético como a voz possível para enunciar a explosão!

Explosão seminal: esperma, sangue, palavras, luz, transpostos para uma explosividade escrita.

«A poesia prova deus,

Ele sabe a gente»

Em última análise, é a Explosão o leitmotiv onde se constrói e perfaz a obra. Um Big-Bang cósmico e íntimo, a partir do qual a matéria se expande até ocupar o vazio.

É silencioso o vazio do Universo. São silenciosas as células. Nuno Brito, perante este silêncio, toca, interpreta a sua música tão pessoal. Dá-nos a ouvir o som do silencioso poço do corpo; a música do silencioso poço do mundo. Duplo Poço é expressão brilhante desta explosão da musicalidade do Universal. É obra.

Refira-se, finalmente, ser esta a primeira edição de um autor da nova chancela, a Hariemuj Editora, sob a batuta de Maria Quintans (que já dinamiza a revista de poesia Inútil). Quando editar poesia (ou prosa poética) se destina a um universo cada vez mais restrito de leitores, saúda-se a escolha desta obra, prenúncio de uma vontade e persistência que, devidamente acauteladas pela exigência e por uma acertada linha editorial, poderão conferir a esta nova editora um lugar sólido no rarefeito e volátil mundo da edição de poesia no nosso país.

(esta nota de leitura, editada, foi elaborada a partir do texto de base para a apresentação do livro Duplo Poço, no dia 22 de Dezembro de 2012, na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul)

Nuno Brito, Duplo Poço, Lisboa: Hariemuj Editora, Novembro de 2012

Hélia Correia — [o medo]

 

«Dificilmente se acredita que os seus textos ainda existam, que estes livros não se apaguem. Pois, ao contrário do lugar comum onde se encontra a vã consolação, ao contrário da crença de que a escrita, trazendo glória, traz eternidade, há este sentimento, que é meu, de que para certa rara gente tudo foi uma única coisa. Não ocorreu uma separação e penso sempre que as ervas que devoram um mortal devorarão também a sua obra. Porque este é um dos casos em que a obra era o orgão vital, o que gerava visão, entendimento, medo e esperma.

Há pessoas assim cuja existência, cuja carne é matéria literária. Não falo já de qualidade. Falo, sim, da quantidade de poema que há num corpo. Da combustão que é feita de palavras em lugar de oxigénio. Falo daquele que, se não escreve, mata alguém. Daquele que não aceita um aparelho de cognição capaz de o proteger com o vulgar conforto do real. Que se educou para a alucinação. O que descreve o brilho intenso que há na noite e é, no entanto, a fonte do fulgor, dessa fosforescência com que os mortos que o tocam, de visita, o contaminam.

Dificilmente se acredita que os seus textos não tivessem ardido inteiramente, não se extinguissem com aquelas mãos que pegavam na insónia para os escrever.»

Hélia Correia, in Revista de artes e Ideias n.º 8, «O Medo», Coimbra: Alma Azul, 2006. p.51

[Nota: este texto, presente no oitavo número da Revista de artes e Ideias, dirigida por Elsa Ligeiro na chancela Alma Azul, alude muito provavelmente ao poeta Al Berto, que escrevera, em 17 de julho de 1984, a célebre entrada: «às vezes, o dia resume-se a uma palavra, mas hoje, se não conseguir escrever, saio para a rua e mato alguém». O texto não tem título, pelo que se optou, para referenciação, pelo tema comum à generalidade dos textos incluídos na revista que, de resto, é dedicada à temática: «Medo»]

«reach»

«reach»

Alma Azul online

Rui Pires Cabral – Começo

Vejo-te um pouco como se já não houvesse

uma casa para nós. As grandes perguntas estão aí

por todo o lado, onde quer que se respire, dentro

dos próprios frutos. É o começo da noite

e os cinzeiros já estão cheios de meias palavras:

porque escolhemos tão pouco

aquilo que nos pertence?

Vejo-te de olhos fechados enquanto me confiavas

a tua história – à mesa da cozinha, quase um espelho,

quase uma razão.  As minhas canções preferidas

pareciam convergir para ti a certa altura, dir-se-ia

que te vestias com elas. E no entanto

como se apressaram as grandes florestas a invadir

as gavetas, como misturaram as raízes

no eco que fazia o teu desejo contra mim.

Cabral, Rui Pires, A Super-Realidade, Lisboa: “Língua Morta”, 2011

[nota do autor: “Este livro é uma reedição. Emendei alguns versos, rasurei outros tantos e excluí nove dos trinta e cinco poemas que compunham a versão original, publicada em Vila Real no outono de 1995”]

"sunsets and beer", Brittany Marter, via Deviantart (D.R.)

Marta Chaves — [Podias obedecer a um registo de perder]

 

 

Podias obedecer a um registo de perder

o respeito, levantar a saia se a tivesses,

alçar a perna se cão fosses, mandar à merda

quem vem socorrer-te da vida e te decepa os dedos.

 

Com um rigor de artilharia que amortece o cansaço,

o combate quase parece sereno. De vez em quando,

fazes a conta de cor e dizes apesar de tudo, inspira-me

e não queres saber muito mais do que isto.

 

Estás na vida como na montra alguns relógios,

parado, e pensas numa sepultura no mar, tudo

menos esta terra, tudo menos uma corda, tudo menos

viver a pulso e ter de sacudir a chuva contra o casaco.

 

Os dias sem prognóstico, vivendo apenas para

esperar a madrugada, e que ela venha como o cortejo

e aprendas a ficar.

Marta Chaves. Telhados de Vidro n.º 16 . Lisboa: Averno, 2012, p. 81.

 

«elevation», Vaughan © Vaughan, via Deviantart (D.R.)

Luís Filipe Parrado — Comer uma laranja

 

Comer uma laranja
é como ingerir o próprio sol,

com a boca cheia de luz
não há portanto
espaço
para palavras
sobre mim.

 

Parrado, Luís Filipe, Entre a Carne e o Osso, Lisboa: Edições Língua Morta, 2012

 

Mark Rothko, «Orange and Yellow», (1956) óleo sobre tela, 231 x 180 cm

Maria Sousa — [A mulher]

 

Uma duríssima luta contra a ausência, revelada no silêncio, na impossibilidade de dizer; a tremenda prova dessa ausência nos lugares habitáveis, no quotidiano — a casa, a cama, o corpo, a voz — lides íntimas que se travam apelando à memória, inevitavelmente sem resposta, que esta se esconde num esquecimento tornado apaziguador, resgatado pela possibilidade de uma sílaba, da palavra escrita; trabalho de equilíbrio do sentimento de si travado no fio de um arame. Na poesia de Maria Sousa o eu é um outro (uma outra), à procura do retorno ao eu outro. Poemas onde se experimenta um incessante labor de resgate, ainda que, para tal, se organize, sem concessões, no largo tempo espectral da noite, um movimento incessante de contenção. É como engolir um grito.

 

[A mulher]

 

A mulher

organiza as sombras para evitar o escuro

na pele sente o medo

 

é prudente na batalha com as perguntas

que pousam no dia

 

sorriso

 

quando o som do telefone invade a sombra

nenhuma palavra lhe sai da voz

deverá falar como se fossem outras coisas a

respirar em vez do grito?

 

à janela, o vento e o sol, limpam-lhe as vozes

sobrepostas a dizer aquilo que a voz não diz.

mas não hoje

 

disse que não seria capaz de mudar

perdida no quarto, pequenino, onde utiliza os hábitos

como movimentos grosseiros

 

nenhuma palavra ali tem asas

 

fica apenas o silêncio onde a mulher fecha

as persianas e depois as cortinas

sem explicar o sentido do grito. 

 

Maria Sousa — [A mulher], poema inédito (lido no ciclo de leituras encenadas “Da Voz Humana”).

«2» — anna, © anna, via Deviantart (D.R.)

Helder Moura Pereira — Escrevias pela Noite Fora

 

Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava

o que ia ficando nas pausas entre cada

sorriso. Por ti mudei a razão das coisas,

faz de conta que não sei as coisas que não queres

que saiba, acabei por te pensar com crianças

à volta. Agora há prédios onde havia

laranjeiras e romãs no chão e as palavras

nem o sabem dizer, apenas apontam a rua

que foi comum, o quarto estreito. Um livro

é suficiente neste passeio. Quando não escreves

estás a ler e ao lado das árvores o silêncio

é maior. Decerto te digo o que penso

baixando a cabeça e tu respondes sempre

com a cabeça inclinada e o fumo suspenso

no ar. As verdades nunca se disseram. Queria

prender-te, tornar a perder-te, achar-te

assim por acaso no meu dia livre a meio

da semana. Mantêm-se as causas iguais

das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina

dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono

custa. Porque estou contigo e me deixas

a tua imagem passa pelas noites sem sono,

está aqui a cadeira em que te sentaste

a escrever lendo. Pudesse eu propor-te

vida menos igual, outras iguais obrigações.

Havias de rir, sair à rua, comprar o jornal.

Helder Moura Pereira, De Novo as Sombras e as Calmas, Lisboa: Contexto, 1990

 

«reading», korlyuk © korlyuk, via Deviantart (D.R.)

Luís Miguel Nava — [As ondas que se encontram]

 

As ondas que se encontram

ainda agora em formação no espírito

dele já não vêm rebentar ao meu.

Por mim não volto a vê-lo, encontros houve

com ele dos quais a alma ficou cheia de dedadas.

Já nem sequer dele quero ouvir falar,

saber que se ele

fosse uma cama estaria por fazer nada me traz

agora além de desconforto.

Luís Miguel Nava. Poemas, Porto: Limiar, 1987, p.59.

Aimee Ketsdever, «empty bed in an empty room II», via Deviantart (D.R.)


 

 

Luiza Neto Jorge — Anos quarenta, os meus

 

De eléctrico andava a correr meio mundo

subia a colina ao castelo-fantasma

onde um pavão alto me aflorava muito

em sonhos, à noite. E sofria de asma

 

alma e ar reféns dentro do pulmão

(como o chimpanzé que à boca da jaula

respirava ainda pela estendida mão).

Salazar, três vezes, no eco da aula.

 

As verdiças tranças prontas a espigar

escondiam na auréola os mais duros ganchos.

E o meu coito quando jogava a apanhar

era nesse tronco do jardim dos anjos

 

que hoje inda esbraceja, numa árvore passiva.

Níqueis e organdis, espelhos e torpedos

acabou a guerra meu pai grita «Viva».

Deflagram no rio golfinhos brinquedos.

 

Já bate no cais das colunas uma

onda ultramarina onde singra um barco

pra Cacilhas e, no céu que ressuma

névoas, águas mil, um fictício arco-

 

-íris como que é, no seu cor-a-cor,

uma dor que ao pé doutra se indefine.

No cinema lis luz o projector

e o FIM através do tempo retine.

 

Luiza Neto Jorge. In: Revista Colóquio/Letras, n.º 97, Maio 1987, p. 59-60.

 

Paula Rego, «Voices (I)», 1996-1998. Série Children´s Crusade (D.R.)

Dia Mundial da Criança — as grandes embirrações e a censura.

Tenho um horror muito grande aos ‘Dias Mundiais’ esses post-it’s institucionais da memória piedosa. O Dia Mundial da Criança irrita-me particularmente. Que não haverá dia algum que me lembre de crianças; são as crianças  que que me lembram a existência dos dias.

Sally Mann, «immediate-family-3», s/d)

[este brevíssimo apontamento foi publicado directamente no Facebook, acompanhado pela magnífica fotografia de Sally Mann, fotógrafa com obra de grande talento. O facto de a artista fotografar os seus filhos (repito, os seus filhos) desde há anos, com uma intimidade e  afecto que se sente bela e incomum, de publicar essas fotografias, levou alguns puritanos a considerá-la pornógrafa. Pelos vistos também no Facebook assim o entenderam: em dez minutos o apontamento — com a fotografia — tinha sido apagado. Fico triste. E nada surpreendido: o Noddy seria sempre mais adequado]

Sally Mann

Página de Sally Mann

Sally Mann family pictures

Al Berto — [os dias sem ninguém]

 

os dias sem ninguém
pequeníssimos recados escritos à pressa
amachucados nos dedos

         foi bela a madressilva
         subindo pela noite da morada esquecida

pedras exactas poeiras perfumadas
bichos de lume dormitando na flexibilidade da argila
areias cobertas de insectos ossos dentes
e o rio por onde partem as noites de cansaço

luminosa floração luas ácidas despenhando-se
fendas de terra cidades costeiras pássaros
frágeis caminhos em pleno voo
durante a lucidez tremenda do sonho

restam-me os corredores de vidro
onde posso afagar os restos carbonizados do corpo
abro a porta que dava acesso ao rosto
desço os degraus musgosos do pátio
atravesso o jardim de alvenaria onde vivi
todo este tempo antes de me precipitar

 

Al Berto. O Medo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998

 

fotografia: Paulo Nozolino