Manuel Hermínio Monteiro – Escritores que se suicidaram

by manuel margarido

Para a minha geração, o Manuel Hermínio Monteiro foi o herói dos editores. O seu amor pela literatura, particularmente pela poesia, levou-o a pegar numa casa descaracterizada, a Assírio & Alvim, fazendo dela a grande referência das editoras que investiam naquilo em que acreditavam (em que o Manuel Hermínio acreditava), construindo um fabuloso catálogo, em grande parte constituído por autores que ele mesmo descobria, “empolgado”, ou recuperava para o olhar mais desatento dos outros. Dois exemplos: nos antigos Pascoaes, nos modernos Cesariny. Nele habitava uma atenção e um afecto profundos a tudo o que fazia. E uma extrema humildade perante a grandeza da escrita e o talento dos seus autores, de que tanto gostava (quem, hoje, tem este amor pelos autores e pela sua obra?). Ser publicado na «Assírio» passou a ser uma espécie de porto de chegada para esses mesmos muitos autores. De editora nas margens do mercado, a «Assírio» ganhou o seu público a pulso; em poucos anos era uma editora de prestígio; poucos passariam até se tornar uma sólida editora independente; que dava lucro. Tudo isto ocorreu durante as décadas de oitenta e noventa do século passado. Com a prematura morte de Manuel Hermínio Monteiro (1952 — 2001) a Assírio & Alvim manteve, é certo, a aura de prestígio que adquirira. Porém, perdeu aos poucos, o golpe de asa. Vive actualmente, em grande medida, da exploração  do seu brilhante catálogo. Arrisca pouco. No ano da sua anunciada morte Manuel Hermínio Monteiro preparou, conjuntamente com uma grande equipa que reuniu, a edição de A Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro, monumental colectânea de poesia de todos os tempos e lugares, que viria a constituir legado e testemunho do que era, verdadeiramente, editar. Na humildade que lhe era tão própria, não reconheceria grande valor à sua escrita. Era, contudo, senhor de uma prosa cristalina e serena; escrevia num português suave, culto e discreto, onde as muitas leituras, o convívio assíduo com o processo de escrita dos outros, as raízes transmontanas, se sentem, mas nunca se impõem aos textos que, aqui e ali, publicava. Em 2004, o “Independente”, na colecção Horas Extraordinárias, edita «Urzes», colectânea de textos do editor. Tudo tem um fim: a vida de um homem grande, um projecto editorial que conheceu uma vitalidade de que agora apenas podemos sentir nostalgia. Deste livro referido (que se pode talvez ainda encontrar em venda nalgumas estações do metropolitano de Lisboa), transcreve-se um admirável texto de Manuel Hermínio Monteiro, que muito gostava das artes-plásticas, escrito a propósito de uma exposição de Fernanda Fragateiro, pano de fundo para uma bela alegoria da floresta como o lugar simbólico que guarda a «entrega» e e «espiral da queda» dos escritores.

[Nota: na impossibilidade de conseguir obter  imagens digitais da exposição de Fernanda Fragateiro a que alude o autor, e não querendo ‘contaminar’ o espírito do texto e das obras nele referidas com outros trabalhos da artista, optei por utilizar fotografias que, entendo, se quadram em diálogo com o texto]


«Faded Intensity, Forgotten Life», Pagit, © Pagit, via Deviantar (D.R.)

Escritores que se suicidaram

Se o mar é buliçoso e falador, a floresta guarda melhor os seus e os outros segredos revestindo de calma a sua fúria. Mas ambos estão cheios de vozes. E se a profundidade do mar está preenchida de medos e de tesouros, os enigmas e os espíritos adensam a obscuridade da floresta. Fernanda Fragateiro, ao escolher a floresta como contraponto representativo dos livros e de escritores que se suicidaram sabe que esta é a casa imensa primordial de todas as bibliotecas, em cujos labirintos podemos perder-nos para sempre. E acontece que os mistérios das florestas dispõem de imperceptíveis tropismos, de uma sensibilidade selvagem e por vezes cruel, pelos quais sorvem os melhores espíritos, precipitando-os no vórtice de onde jamais sairão, a não ser pela glória da escrita. Eles são os mártires de um sacrifício tão empolgante como ignorado. Com um considerável susto, passamos ao lado do profundo escuro dos medos condensados. Ninguém pergunta se o direito que ainda temos a caminhos, a ar, à lua, ou ao adejar das ramagens não advirá do assumido martírio de uns quantos que nos deixaram, além da arquitectura e da beleza das suas palavras, um gesto radical indicativo. O que Fernanda Fragateiro mostrou na Livraria da Assírio & Alvim foi um diálogo silencioso, como acontece na melhor literatura. De um lado, inúmeras árvores em miniatura representavam uma floresta de aparentes repetições, organizando um espaço que valorizava os intervalos vazios entre as muitas árvores (são esses os nichos dos mistérios e dos sinais). Do outro lado, e na sequência da floresta de livros da livraria, uma prateleira com a indicação «Livros de autores que se Suicidaram». Poderiam constituir apenas uma especialização ou um assinalado segmento da livraria. A sinalética era exactamente igual à das outras secções. A artista, pelo contrário, diz que não. Os livros estão justamente no seu lugar próprio. Mas apesar das lombadas, das palavras impressas, eles agem num conjunto provocando uma energia que os destaca e os relaciona com os espíritos soltos da floresta. Os nomes de cada autor dão-se-nos pelos livros, mas, na verdade, pertencem a outra constelação nada doméstica e muito menos transaccionável. Vozes sopram do espírito da floresta e são tanto do óxido dos dias quanto os livros os livros que amarelecem têm em si o mais perdurável do corpo da floresta. E a floresta significa aqui o corpo da sociabilização, com as suas respectivas cedências e fracturas. À humanidade, estes escritores entregaram as palavras da criação para depois regressarem por conta própria ao Jardim Terreal. Depois de passarem os «claros del Bosque» (1) e as encruzilhadas várias, , de se afundarem na cinza escutarem provado as bagas e experimentado  o espinho. Depois de arrecadarem a aura das musas, a lenda dos gnomos e dos duendes e aspirando a Flor Azul, depois de terem entregue todas as palavras aos seus leitores, partem. Partem finalmente, directos à mão de Deus que, como reza o poeta suicida Antero de Quental, é onde repousa o coração dos que não se conformam  com o desleixo de um lugar  que primeiro foi paraíso deleitoso de homens e de árvores e do qual todos aceitámos, conformada e estuciosamente, ter sido definitivamente expulsos.»

(1) Aparente referência ao livro com o mesmo nome, de Maria Zambrano, autora de que M.H.M. muito gostava e editou. Excerto aqui.

Monteiro, Manuel Hermínio, Urzes, Lisboa: O Independente, 2004

(previamente publicado em A Phala, n.º 54, Março 1997.)

«Bench», Ilco Trajkovsky © Ilco Trajkovsky, via Deviantart (D.R.)

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