As Folhas Ardem

a poesia do mundo. o mundo da poesia. incêndios e queimadas.

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Herberto Helder — O Extremo Poder dos Símbolos

 

 

«O extremo poder dos símbolos reside em que eles, além de concentrarem maior energia que o espectáculo difuso do acontecimento real, possuem a força expansiva suficiente para captar tão vasto espaço da realidade que a significação a extrair deles ganha a riqueza múltipla e multiplicadora da ambiguidade. Mover-se nos terrenos dos símbolos, com a devida atenção à subtileza e a certo rigor que pertence à imaginação de qualidade alta, é o que distingue o grande intérprete do pequeno movimentador de correntes de ar.»

 

Herberto Helder. Photomaton & Vox, Lisboa: Assírio & Alvim, 1979.

 

monoceroi © by monoceroi, via Deviantart (D.R.)

Herberto Helder — LEVANTO as mãos e o vento levanta-se nelas.

 

LEVANTO as mãos e o vento levanta-se nelas.

Rosas ascendem do coração trançado

das madeiras.

As caudas dos pavões como uma obra astronómica.

E o quarto alagado pelos espelhos

dentro. Ou um espaço cereal que se exalta.

Escondo a cara. A voz fica cheia de artérias.

E eu levanto as mãos defendendo a leveza do talento

contra o terror que o arrebata. Os olhos contra

as artes do fogo.

Defendendo a minha morte contra o êxtase das imagens.

 

Helder, Herberto, Ofício Cantante, Lisboa: Assírio & Alvim 2009

 

fotografia: «7_Troco de oliveira recolhido em Santa Bárbara de Nexe. Museu de Faro. 2005» — Duarte Belo

 

   Herberto Helder no site da DGLB

   Site do fotógrafo Duarte Belo

Herberto Helder — Poemacto II

 

 Produção de imagem por Cine Povero; música de Rodrigo Leão; poema dito por Herberto Helder.

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa,
uma só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas.
E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes sangra e canta.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

– Era uma casa – como direi? – absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
– Porque o amor das coisas no seu tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.

As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
— Era húmido, destilado, inspirado.

Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.

Era uma casabsoluta – como direi? –
um sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.

– Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem para amar e ruminar.
O leite cantante.

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
– Caneta do poema dissolvida no sentido primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia,
com furibunda concepção.
Com alguma ironia furibunda.

Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete.
Sou alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.
Herberto Helder, Poemacto II

 

Herberto Helder — Engoli

 

Engoli
água. Profundamente:  a água estancada no ar.
Uma estrela materna.
E estou aqui devorado pelo meu soluço,
leve da minha cara.
O copo feito de estrela. A água com tanta força
no copo. Tenho as unhas negras.
Agarro nesse copo, bebo por essa estrela.
Sou inocente, vago, fremente, potente,
tumefacto.
A iluminação que a água parada faz em mim
das mãos à boca.
Entro nos sítios amplos.
— O poder de reluzir em mim um alimento
ignoto; a cara
se a roça a mão sombria, acima
da camisa inchada pelo sangue,
abaixo do cabelo enxuto à lua. Engoli
água. A mãe e a criança demoníaca
estavam sentadas na pedra vermelha.
Engoli
água profunda.

 

Helder, Herberto, Poesia Toda, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996

 

«- glass -» Luthe, © Luthe, via Deviantart (D.R.)

Herberto Helder — «Por isso ele era rei, e alguém (…)»

 

 

Por isso ele era rei, e alguém

se punha diante da realeza para ter um pensamento, uma palavra

súbdita: dá-me um nome, uma

baforada

desfere o ceptro contra a minha testa para eu ver

uma constelação maior que onze varas,

enche de hélio o espaço reservado à minha glória quando me volto

na escuridão com toda a potência

dos raios, dizia, o torso envolto pelas ramagens

do fogo,

bate-me na testa e que eu seja a minha luz, onze

varas de luz para os braços torcidos,

uma camisa aos rasgões brilhantes por força

da entrada e saída

do ar, porque de ti recebo a soberania e lanço pela boca

petróleo a arder como no circo dos prodígios

fazem os reis terríveis,

por isso também eu tenho o poder e o sítio e o exercício

desta magia: a realeza de uma combustão,

acto, verbo,

e em estado natural os elementos:

madeira, cristal e ouro, e o ar movendo

o poema número a número.


Helder, Herberto, Poesia Toda, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996

 

«Nebula», Cristina Romero Ríos © Cristina Romero Ríos, via Deviantart (D.R.)

Herberto Helder – O Poema/I

 

Ainda as escolhas de Maria Alzira Seixo (em os poemas da minha vida). O poema de Herberto Helder e o breve comentário aposto ao mesmo.

 

O POEMA/I


Um poema cresce inseguramente

na confusão da carne.

Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,

talvez como sangue

ou sombra de sangue pelos canais do ser.


Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência

ou os bagos de uva de onde nascem

as raízes minúsculas do sol.

Fora, os corpos genuínos e inalteráveis

do nosso amor,

rios, a grande paz exterior das coisas,

folhas dormindo o silêncio

— a hora teatral da posse.


E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.


E já nenhum poder destrói o poema.

Insustentável, único, invade as casas deitadas nas noites

e as luzes e as trevas em volta da mesa

e a força sustida das coisas

e a redonda e livre harmonia do mundo.

— em baixo o instrumento perplexo ignora

a espinha do mistério.


— E o poema faz-se contra a carne e o tempo.

 

 

Head of J. M. II © Frank Auerbach (D.R.)

 

(nota de leitura de Maria Alzira Seixo)

[Com Herberto aprendemos sempre que o poema é, em termos de linguagem, construção e objecto, e damos conta do seu incomensurável poder. Só a ele ficarão incólumes os analfabetos, e é da responsabilidade de todos que eles deixem de existir, por este meio também.] – Maria Alzira Seixo.

Ligações Relacionadas:

sobre Herberto Helder

sobre Herberto Helder (em língua inglesa)

sobre o poema

Herberto Helder – “Quero um erro de gramática que refaça”


Quero um erro de gramática que refaça

na metade luminosa o poema do mundo,

e que Deus mantenha oculto na metade nocturna

o erro do erro:

alta voltagem do ouro,

bafo no rosto.

Helder, Herberto, “Poesia Toda”, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.

"the other side of the room" © Cyril Berthault-Jacquier & Mehmet Arslan (díptico) via Deviantart

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Poesia Portuguesa (19) – Herberto Helder – A Faca Não Corta o Fogo

Depois do acontecimento literário do ano, do incondicional estatuto reconhecido ao livro como obra-prima, das técnicas de marketing, do bruá que gerou – e tudo isto, diga-se, com justa causa; depois de passada a onda, o buzz; transcrevo um poema (necessariamente um fragmento, apesar de delimitado no corpo da obra) de A Faca Não Corta o Fogo, súmula & inédita, de Herberto Helder. Apenas sugiro, a quem não tem o livro, que cometa um crime de furto (ou gamanço, conforme o étimo que melhor casar com a sua consciência).

A belíssima capa, de Ilda David, é sobejamente conhecida. Escolhi não a repetir (basta procurar em qualquer motor de busca).

Nota: os símbolos que ‘autonomizam’ este texto são, na edição impressa, pequenas estrelas de cinco pontas, preenchidas a negro. Por não ter este editor de texto tal símbolo, foi escolhido o pequeno losango.

a faca não corta o fogo,

não me corta o sangue escrito,

não corta a água,

e quem não queria uma língua dentro da própria língua?

eu sim queria,

jogando linho com dedos, conjugando

onde os verbos não conjugam,

no mundo há poucos fenómenos do fogo,

água há pouca,

mas a língua, fia-se a gente dela por não ser como se queria,

mais brotada, inerente, incalculável,

e se a mão fia a estriga e a retoma do nada,

e a abre e fecha,

é que sim que eu a amava como bárbara maravilha,

porque no mundo há pouco fogo a cortar

e a água cortada é pouca,

¡que língua,

que húmida língua, que muda, miúda, relativa, absoluta,

e que pouca, incrível, muita,

e la poésie, c’est quand le quotidien devient extraordinaire, e que música,

que despropósito, que língua língua,

é do Maurice Lefèvre, e como rebenta com a boca!

queria-a toda

Herberto Helder, in A Faca Não Corta o Fogo, súmula & inédita, pp. 66-67, Assírio & Alvim, Lisboa, Setembro de 2008.

'rasto de fogo branco' © Ricardo Ribeiro, Olhares, Fotografia Online

'rasto de fogo branco' © Ricardo Ribeiro, Olhares, Fotografia Online

Poesia Portuguesa (XIV) – Herberto Helder

(à Beatriz. Perceberá)

Este blogue chega a Herberto Helder. Deveria, se seguisse critérios de ‘actualidade’ escrever sobre (melhor, revelar, dar a conhecer um pouco de) A Faca Não Corta o Fogo. Lá iremos. Se formos. Herberto Helder em texto/carta publicada no primeiro número da revista Abril (1977), dirigida por Eduardo Prado Coelho (revista da qual saíram nove números, que a minha mãe mandou encadernar em pele, abençoada seja) escrevia: «(…) Gostei da sua pergunta sobre o que seria citável. Sim, o que é citável de um livro, de um autor? Decerto, a sua morte pode ser citável. E sobretudo, o seu silêncio.» Esta declaração não deve estranhar-se num poeta cuja obra nunca é definitiva, ou seja, vai conhecendo um contínuo percurso de reformulação. Na obra de Herberto Helder não podemos falar de reedições, mas de versões em estado de latência, em “suspensão“, nas palavras do poeta; nunca será possível uma edição ne varietur, daquelas que os autores consideram lapidadas para a posteridade. Como ele mesmo diz, «talvez só essa suspensão seja citável» Estamos, portanto, no domínio da impossibilidade, do segredo mais fundo do autor. Ainda assim, corra-se o risco de cristalizar no tempo um poema. Escolhido para integrar Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro, a mais bela colectânea de poesia jamais feita em Portugal, este poema (II de VI) foi, de certa forma, fixado para sempre. Apesar dele.

Nota: para uma leitura da obra de Herberto Helder, Um Pouco da Morte (Editorial Presença, pp. 125-136, Lisboa, 1989), o livro de análise literária que rompe os cânones da crítica do seu tempo, de Joaquim Manuel Magalhães (obra axial no seu trabalho ensaístico) foi o melhor que li até hoje e ampliou a possibilidade de o ler mais fundo. Recomendo muito.


FONTE

(II)

No sorriso louco das mães batem as leves

gotas de chuva. Nas amadas

caras loucas batem e batem

os dedos amarelos das candeias.

Que balouçam. Que são puras.

Gotas e candeias puras. E as mães

aproximam-se soprando os dedos frios.

Seu corpo move-se

pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões

e órgãos mergulhados,

e as calmas mães intrínsecas sentam-se

nas cabeças filiais.

Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,

vendo tudo,

e queimando as imagens, alimentando as imagens,

enquanto o amor é cada vez mais forte.

E bate-lhes nas caras, o amor leve.

O amor feroz.

E as mães são cada vez mais belas.

Pensam os filhos que elas levitam.

Flores violentas batem nas suas pálpebras.

Elas respiram ao alto e em baixo. São

silenciosas.

E a sua cara está no meio das gotas particulares

da chuva,

em volta das candeias. No contínuo

escorrer dos filhos.

As mães são as mais altas coisas

que os filhos criam, porque se colocam

na combustão dos filhos, porque

os filhos estão como invasores dentes-de-leão

no terreno das mães.

E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,

e atiram-se, através deles, como jactos

para fora da terra.

E os filhos mergulham em escafandros no interior

de muitas águas,

e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos

e na agudeza de toda a sua vida.

E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,

e através dele a mãe mexe aqui e ali,

nas chávenas e nos garfos.

E através da mãe o filho pensa

que nenhuma morte é possível e as águas

estão ligadas entre si

por meio da mão dele que toca a cara louca

da mãe que toca a mão pressentida do filho.

E por dentro do amor, até somente ser possível

amar tudo,

e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.

Herberto Helder, in ‘Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o futuro‘, pp.1698-1700, Assírio & Alvim, Lisboa, Agosto de 2001

Pietá - William Blake, circa 1795 © Tate Gallery

Pietá - William Blake, circa 1795 © Tate Gallery

(clique para ampliar)

Novos poetas (XVI) – David Teles Pereira

Enquanto não trago aqui a ‘leitura’ do segundo número da criatura, deixo este recentíssimo poème à clef, estabelecendo um jogo pessoal e críptico com o título do livro novo de Herberto Helder, A Faca Não Corta o Fogo. Bravata geracional, sentido de desafio, de demarcação? Seja como for, nele encontramos formulações surpreendentes.

Eu oiço os anjos cantar uns para os outros,
os demónios gritar uns contra os outros.
Eu vejo a limpidez do poema ou a sua completa
aniquilação de estrela fracturada pela
metamorfose cósmica.
E tudo isso me parece tão naturalmente
aborrecido quanto ver uma criança
a ser carbonizada.
Eu sou um colóquio de assassinos e
os verdadeiros assassinos usam facas,
porque é melhor matar por partes.
O fogo não consome o meu fogo,
pelo menos enquanto ele se chamar faca.
E se a faca não corta o fogo…

chega para matar um incendiário.

David Teles Pereira, in blogue ‘O Melhor Amigo’ (http://omelhoramigo.blogspot.com/), Quinta-feira, Outubro 16, 2008


'fire' © Marco Negrinho, Olhares, Fotografia online

'fire' © Marcos Negrinho, Olhares, Fotografia online