Na muito mais que agradável noite de poesia e música Os Poetas da Meia Noite, que aqui se anunciou, Miguel-Manso é o último poeta a dizer os seus textos. Di-los (muito bem de resto, num tom desprendido, quase casual) e à medida que os vai lendo deixa cair as folhas manuscritas no chão. No final, quando os autores e os músicos saem, chama-se-lhe a atenção para os papéis deixados espalhados, aparentemente esquecidos. O Miguel encolheu os ombros, como quem diz «fiquem com eles». Eu, dando largas ao meu lado saloio, peguei numa das folhas, com um poema do último livro do autor, “Santo Subito” (sendo que o subito não é gralha). Continuando o parolo episódio, pedi-lhe que me identificasse o manuscrito, expressão rebuscada para o piroso gesto de pedir um autógrafo. Sendo o Miguel um senhor e um senhor gentil, assim o fez. E aqui se deixa, transcrito o poema como vem composto no livro… e a folha em que o mesmo poema foi escrito para ser lido em público.
Na noite de 20 para 21 fiz bem em andar aos papéis. Obrigado, Miguel-Manso.
(exegetas: aqui tendes material para aturados estudos sobre as variações da grafia do poema, as letras emendadas, a inclinação dos versos, a questão das maiúsculas e das minúsculas, coisas capaz de proporcionarem preciosos estudos no “Centro de Documentação Miguel-Manso”, “Casa de Miguel-Manso”, “Fundação Miguel-Manso”, a ser inaugurada possivelmente em Santarém, certamente em 2079)
Manso em Março 10
EM ÉVORA, UM TERRAÇO
quando o nível das águas subir
(não se sabe ainda quantos metros)
e se apagarem certos lugares: a sombra
do limoeiro da infância
a praia onde todo o Verão cabia
e terminar submerso tudo o que foi raso e sacro
então que pelo menos permaneça intacto
aquele terraço em Évora
MIGUEL-MANSO, “Santo Subito”, Lisboa: Os Carimbos de Gent, Março de 2010 (edição de autor)