As Folhas Ardem

a poesia do mundo. o mundo da poesia. incêndios e queimadas.

Etiqueta: Miguel-Manso

Miguel-Manso — STATUS REPORT

 

sou comarca onde parou de chover

e quem não se lembra da sanguechuva

que foi em tempos este coração

 

já não tenho a vida toda (faço trinta

o mês que vem) e a verdade é que nem

na morte se pôde alguma vez confiar

 

muito mal contado isto da morte

 

Miguel-Manso, Santo Subito, Lisboa: Os Carimbos de Gent, Março de 2010 (edição de autor)

 

«life and death», via Deviantart (D.R.)

 artigo na Visão Online sobre o autor.

Oficina de Poesia para Conserto de Automóvel

 

 

Um evento inesperado, possivelmente tanto como as circunstâncias que o provocaram. Ter Margarida Ferra, Margarida Vale de Gato, Miguel Cardoso e Miguel-Manso, duas solidárias Margaridas e dois amigos Migueis lendo-se «multiplamente com críticas dos participantes» seria em si um bom acontecimento; neste caso, o pequeno drama quotidiano de uma valente mulher e amante editora de poesia transforma-se no pretexto para que o acontecimento seja virado poeticamente de patas para o ar. E do pequeno drama automobilizado, surge uma noite onde se espera que surja o inesperado. Um acto poético, pede-se, a cada um dos nossos dias. Pois aqui o têm, servido de bandeja. E o privilégio de poder dar uma mãozinha à Helena Vieira, que já nos deu tantas coisas.

 

 

embora lá ajudar a pôr o farolim no sítio

(clique para ampliar)

 

Link Relacionado:

Espaço SOU

Miguel-Manso — Balada da Rua Damasceno Monteiro

 

(à sara)

Os poetas não são augures; mas viveram impossivelmente antes o que veio depois, sentiram improvavelmente antes o que aconteceria depois; não adivinham: passam pelo que que há-de acontecer, pelo pressentimento dos segredos de uma casa, dos segredos de uma rua. O que está escondido têm  os poetas, alguns poetas, revelado para si, assim. E assim foi. Como no poema.

 

BALADA DA RUA DAMASCENO MONTEIRO


ardia de amor pela casa

numa confusão de silêncios ou

dizendo de outro modo


afundava-se numa líquida recordação cardíaca


ocultos pólen pólvora fósforos

a má reputação dos dedos

paixão cartografada remota

toponímia dos enganos


braço a braço crescia alto

o incêndio no interior do peito

deliberado ritual de lâminas e pele

a transparente certeza

da cicatriz


mas ardia de amor pela casa soturna

silêncio dando para o saguão luz muitíssimo

extinta por sobre a larga extensão destruída


morrer, principalmente de amor, é

uma compendiosa tarefa doméstica


dentro do coração antigo

serei breve


Miguel-Manso, Contra a Manhã Burra, Lisboa: Mariposa Azual, Maio de 2009

grafitti na Rua Damasceno Monteiro

Guta Naki

"Os Poetas da Meia Noite" - fotografia de Rita Nunes

Ainda ecos da sessão / evento / sei lá como catalogar, que teve lugar na noite de 20 para 21, no Teatro Casa da Comédia. Apresentados pelo anfitreão Filipe Crowford, nesta fotografia (descaradamente roubada no Facebook, da autoria de Rita Nunes), da esquerda para a direita: Miguel-Manso, Ana Salomé, Hugo Milhanas Machado, Filipa Leal, Vasco Gato e Catarina Nunes de Almeida. Seis autores com vozes poéticas muito distintas, mas tendo em comum uma maturidade e intensidade notáveis (aqui apenas o gosto determinará preferências). Manuel Cintra encerrou (ele que afirmou preferir abrir) a festa. Entre leituras, gostei particularmente de ouvir os Guta Naki, grupo que não conhecia. Entre textos de Álvaro de Campos e Henry Miller, pelo menos uma cantora de uma expressividade vocal e cénica surpreendentes.

Miguel-Manso, o “Santo Subito”, os papéis deixados caídos

Na muito mais que agradável noite de poesia e música Os Poetas da Meia Noite, que aqui se anunciou, Miguel-Manso é o último poeta a dizer os seus textos. Di-los (muito bem de resto, num tom desprendido, quase casual) e à medida que os vai lendo deixa cair as folhas manuscritas no chão. No final, quando os autores e os músicos saem, chama-se-lhe a atenção para os papéis deixados espalhados, aparentemente esquecidos. O Miguel encolheu os ombros, como quem diz «fiquem com eles». Eu, dando largas ao meu lado saloio, peguei numa das folhas, com um poema do último livro do autor, “Santo Subito” (sendo que o subito não é gralha). Continuando o parolo episódio, pedi-lhe que me identificasse o manuscrito, expressão rebuscada para o piroso gesto de pedir um autógrafo. Sendo o Miguel um senhor  e um senhor gentil, assim o fez. E aqui se deixa, transcrito o poema como vem composto no livro… e a folha em que o mesmo poema foi escrito para ser lido em público.

Na noite de 20 para 21 fiz bem em andar aos papéis. Obrigado, Miguel-Manso.

(exegetas: aqui tendes material para aturados estudos sobre as variações da grafia do poema, as letras emendadas, a inclinação dos versos, a questão das maiúsculas e das minúsculas, coisas capaz de proporcionarem preciosos estudos no “Centro de Documentação Miguel-Manso”,  “Casa de Miguel-Manso”, “Fundação Miguel-Manso”, a ser inaugurada possivelmente em Santarém, certamente em 2079)

Manso em Março 10

EM ÉVORA, UM TERRAÇO


quando o nível das águas subir

(não se sabe ainda quantos metros)

e se apagarem certos lugares: a sombra

do limoeiro da infância


a praia onde todo o Verão cabia


e terminar submerso tudo o que foi raso e sacro

então que pelo menos permaneça intacto

aquele terraço em Évora


MIGUEL-MANSO, “Santo Subito”, Lisboa: Os Carimbos de Gent, Março de 2010 (edição de autor)

Os Poetas da Meia Noite

De repente, com o início do ano, as iniciativas em torno da poesia e dos novos autores parecem multiplicar-se em Lisboa. Depois da Poesia em Vinyl ter surgido a 14 de Janeiro, ao que parece para continuar e bem, a criteriosa e imaginativa qualidade de programador de Filipe Crowford vai levar ao Teatro Casa da Comédia,  no  dia 20 de Março (entrando pela noite fora, trespassando assim o Dia Mundial da Poesia essa desnecessidade), o evento intitulado «Os Poetas da Meia Noite». Dos seis poetas convidados, cinco são muito da estima deste blogue, faltando inexplicavelmente saber por que raio nunca aqui se enroscou o Vasco Gato (salvo seja). Assunto a tratar em breve. Olhando para o programa, a coisa parece prometer muito. Ide, portanto.

O programa das festas:

TEATRO CASA DA COMÉDIA  Poetas da Meia-noite
Comemorações do Dia Mundial da Poesia (21 de Março).
” Há poetas que choram…
Há poetas que riem…Há poetas que cantam…
… mas, acima de tudo, há poetas que respiram a alma pela flor da pele, como suor, sangue ou lágrimas.
Descubra os Poetas da Meia-noite, dia 20 de Março, pelas 22h, no Teatro Casa da Comédia.
Venha desarmado… ”

Participação de: Ana Salomé, Catarina Nunes de Almeida, Filipa Leal, Hugo Milhanas Machado, Miguel Manso e Vasco Gato.Participação especial de: Manuel Cintra e Filipe Crawford.

Músicos: Lder, Nanu Figueiredo (mola dudle), Gutanaki, Gonçalo Miragaia e mais um convidado surpresa.

"venha desarmado"

TEATRO CASA DA COMÉDIA
Rua São Francisco de Borja, 22 – 1200-843 Lisboa
Tel.: 21 395 94 17/8 Fax: 21 395 94 19 Produção: 969826535
info@filipecrawford.com
teatro.casadacomedia@gmail.com
http://www.filipecrawford.com

Vão okupar o meu coreto!

Sim, o coreto do Jardim da Estrela, o meu coreto de puto! Aquele onde tocavam as gloriosas Bandas da GNR e da Carris, para minha muito proveitosa instrução musical. Uma falta de respeito tão insultuosa… que espero ver gente pendurada nas árvores. É que, isto sim, isto é uma okupação. Óptima ocupação para Sábado, dia 11, em Lisboa.

'Só falta a banda da Carris'

'Só falta a banda da Carris'

(clique para ampliar)

Programa da Okupação:

16h – 16h30 : Kumpania Algazarra (começam no Coreto, tocam pelo Jardim e voltam e, se quiserem, podem fechar a okupação)
16h30 – 17h : Puzzle
17h – 17h30 : Stack em Blues
17h30 – 18h : Lula Pena
18h – 18h30 : Leituras : João Pacheco, Miguel Manso, E. M. Melo e Castro e Cyombra
(sugestão: acompanhamento musical pelo Fernando Dinis e Reymundo)
18h30 – 19h : Babilónia Reduzida
19h – 19h30 : Jorge Ferraz
19h30 – 20h : Fernando Dinis (piano) e Reymundo (acordeão)
20h – 20h30 : Tramas
20h30 – 21h : Pedro e Diana
21h – 21h30 : Leituras : Luís Testa, Alice Valente Alves, Miguel Cardoso e Rui Antunes
(a sugestão continua válida, assim como para todos os outros músicos participantes)
21h30 – 22h : Paulo Condessa e Afonso Azevedo
22h – 22h30 : Apetite Mor
22h30 – 23h : Guto Pires
23h – 23h30 : Ventilan
23h30 – 24h : Samuel Úria e Amigos

Novos Poetas (39) – Miguel-Manso

Dois em um: aproveita-se para relembrar o número zero da revista Índice, já comentada neste blogue, cujo número zero ainda terá exemplares disponíveis. Como são gratuítos, pode sempre tentar pedir-se um exemplar à Mariposa Azual, editora responsável da publicação (esperemos que a Primavera traga o desejado número um); aproveita-se para relembrar Contra a Manhã Burra, o livro de Miguel-Manso, do qual, naquele número zero da Índice, se publicaram dois poemas. Em Setembro do ano passado. Antes de ser ‘descoberto’ pela generalidade dos media de grande circulação. Sobre o autor, igualmente, já se escreveu aqui no blogue.

Dois em um: dois poemas no mesmo post.

PASSAGEM DO AUTOR


a manhã abriu

à primeira

gaivota


decidiu mais uma

vez largar o mundo

tentar a cicatriz litoral do êxito


mar do lado direito do carro

o frio nos dedos agora limpos de tabaco

a primeira luz


mãos oceânicas

seguram o negro volante

amanhecido


pensa

no mais argênteo comércio

do peixe


é dos que choram no cinema

e depois saem dissimulando

o rosto

 estrada perdida V © paulO lisboA, Olhares, Fotografia online

estrada perdida V © paulO lisboA, Olhares, Fotografia online

RETRATO de ÂNGELO de LIMA


Sílaba quente

No rumo da frase até à sílaba fria

De Ninive


Da cabeça

uma claridade de tijolo nas

cousas do olhar


desde Chu-Si a Kuan-Su

sobre a mesa de jóias eu agradeço

à criança da razão verde


milhões de vezes

a pirâmide inversa até à

coluna eterna do


poeta Ângelo de Lima

acreana queda em estática face

a pose derramada de

mia soave

the FUNERAL © Mark Freedom, Olhares, Fotografia Online

the FUNERAL © Mark Freedom, Olhares, Fotografia Online

Novos Poetas (33) – Miguel-Manso

Miguel-Manso (1979) é, para alguns autorizados e credíveis críticos literários, uma das mais interessantes vozes poéticas deste início de século. Afirmou-o António Guerreiro, na escolha de livros editados em 2008 (Actual, Expresso, 27 de Dezembro de 2008), escrevendo: Miguel-Manso, por sua vez, com dois livros publicados este ano (escolhemos o mais recente) é a mais segura revelação no campo da poesia. De igual forma, Henrique Fialho, no incontornável Volumen, havia já feito a leitura de Contra a Manhã Burra (Guerreiro refere Quando Escreve Descalça-se, Trama, 2008). É justamente no blogue da Trama, um local que respira amor pela profissão de livreiro em cada linha, que se recolheu este poema.

verão de canterbury


não há em nenhuma cidade

resposta para tudo


procurei no Verão de

Canterbury

pressionei a campainha de uma porta

com os dedos sujos de morangos


cá fora nada que pudesse dizer

que lá dentro

quem ouvia

ouvia desde Bangalore

que é como quem diz


os poetas sempre afirmaram

que o universo recomeça sempre a

cada dealbar da voz mais

funda uma


onda um desenho de Hokusai

Miguel-Manso, in Contra a Manhã Burra, edição de autor, Maio de 2008

'A Grande Onda' - Hokusai

'A Grande Onda' - Hokusai