No memorável número 006 da Piolho — Revista de Poesia, publicado em Setembro de 2011, iniciativa de um incansável A. da Silva O., publica-se um invulgar poema de Manuel de Freitas, de rara expressão cáustica, reveladora de um olhar desencantado sobre o domínio onde justamente o autor se move, a literatura; melhor dito, o modo de se estar na autoria literária. A força do poema reside também aqui, na singularidade de uma voz que ironiza ao limite; não estamos no início do século passado, vituperar desta forma fica mal e não é suposto, somos todos civilizadíssimos. Manuel de Freitas porém, escreve um manifesto antagónico onde nem necessário se torna nomear. Faz falta, na poesia portuguesa (na literatura, em geral) polémica e afirmação por exclusão: dizer o que se não quer. Magnífico.
Inventário plebeu
A verdade, digam lá o que disserem,
é que tivemos muito pouca sorte
com os poetas (?) nossos contemporâneos.
Um nasceu em Galveias e tatua-se
ou alfineta-se para disfarçar um vazio evidente;
outro gosta de andar nu em Braga,
muito depois – e aquém – de qualquer Pacheco.
(Ignoram, ambos, que a única pila maior
do que o mundo era a do João César Monteiro.)
Um terceiro, cujo nome nunca escreverei,
é a mulher moderna da edição
às cegas e da sacanice quotidiana. O quarto
ou o quinto (gabo quem os logra distinguir)
arrotam melancolia e não admitem
o mínimo desvio à sacrossanta transfiguração da lírica.
O sexto – não, não me apetece falar aqui do sexto.
Consola-nos, isso sim, saber que uns se tornaram
entretanto romancistas (pilim, pilim), e que os restantes
hão-de ser, muito em breve, ministros
ou apenas pulhas (é, no fundo, a mesma coisa).
Enquanto, de esgoto em esgoto,
Portugal progride a olhos vistos
e é bem capaz de levar, um dia destes,
com outro Nobel nas trombas.
Manuel de Freitas, in «Piolho 006 [REVISTA DE POESIA], Porto: Edições Mortas / Black Sun Editores, Setembro, 2011, p. 43
38.725662
-9.150357