As Folhas Ardem

a poesia do mundo. o mundo da poesia. incêndios e queimadas.

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Manuel de Freitas — III (Grande Hotel de Paris)

III (Grande Hotel de Paris)

para a Inês Dias

A morte, claro. Existem porém

dias grandes, irredutíveis a versos,

em que a indecisão da luz

nos açoita de felicidade.

 

São dias raros, futuras

imagens do nada, o suficiente

para que a palavra amor substitua

o primeiro cigarro da manhã.

 

Chegámos tarde. O quarto 203

trazia-me de novo o teu corpo.

E até a música dos sinos

vinha deitar-se connosco.

 

Manuel de Freitas. Telhados de Vidro n.º 3 [Último poema do tríptico Passeio Alegre]. Lisboa, Averno, 2004, p. 44.

 

 

Residencial Grande Hotel de Paris (Porto)

 

Manuel de Freitas no portal da D-GLB.

Manuel de Freitas — Inventário plebeu

No memorável número 006 da Piolho — Revista de Poesia, publicado em Setembro de 2011, iniciativa de um incansável A. da Silva O., publica-se um invulgar poema de Manuel de Freitas, de rara expressão cáustica, reveladora de um olhar desencantado sobre o domínio onde justamente o autor se move, a literatura; melhor dito, o modo de se estar na autoria literária.  A força do poema reside também aqui, na singularidade de uma voz que ironiza ao limite; não estamos no início do século passado, vituperar desta forma fica mal e não é suposto, somos todos civilizadíssimos. Manuel de Freitas porém, escreve um manifesto antagónico onde nem necessário se torna nomear. Faz falta, na poesia portuguesa (na literatura, em geral) polémica e afirmação por exclusão: dizer o que se não quer. Magnífico.

Inventário plebeu

A verdade, digam lá o que disserem,
é que tivemos muito pouca sorte
com os poetas (?) nossos contemporâneos.

Um nasceu em Galveias e tatua-se
ou alfineta-se para disfarçar um vazio evidente;
outro gosta de andar nu em Braga,
muito depois – e aquém – de qualquer Pacheco.
(Ignoram, ambos, que a única pila maior
do que o mundo era a do João César Monteiro.)

Um terceiro, cujo nome nunca escreverei,
é a mulher moderna da edição
às cegas e da sacanice quotidiana. O quarto
ou o quinto (gabo quem os logra distinguir)
arrotam melancolia e não admitem
o mínimo desvio à sacrossanta transfiguração da lírica.

O sexto – não, não me apetece falar aqui do sexto.

Consola-nos, isso sim, saber que uns se tornaram
entretanto romancistas (pilim, pilim), e que os restantes
hão-de ser, muito em breve, ministros
ou apenas pulhas (é, no fundo, a mesma coisa).

Enquanto, de esgoto em esgoto,
Portugal progride a olhos vistos
e é bem capaz de levar, um dia destes,
com outro Nobel nas trombas.

 

Manuel de Freitas, in «Piolho 006 [REVISTA DE POESIA], Porto: Edições Mortas / Black Sun Editores, Setembro, 2011, p. 43

 

BosniaK © BosniaK, via Deviantart (D.R.)

Rosa Maria Martelo – A Porta de Duchamp

Editado pela Averno, infatigável oficina editorial que, pelo labor de Manuel de Freitas, tem proporcionado, com persistente rigor, alguma da melhor poesia contemporânea, acaba de sair, no final de 2009, A Porta de Duchamp, de Rosa Maria Martelo. O livro reúne pequenos textos em prosa, forma que se vai generalizando em cada vez mais autores, sem que daí venha mal ao mundo, parece que sedento de “romances” de fundo. Mas basta ler A Porta de Duchamp para notar que, pelo rigor formal desta escrita de amadurecida capacidade narrativa (por vezes com alguns traços de pendor quase ensaístico), na sua discreta revisitação aos territórios da arte, no incisivo apontamento intimista (como no belíssimo “fragmento” Sombras), nos desfazermos facilmente da noção, possivelmente estimulada pela instâncias da crítica e encorajada pelos departamentos de marketing, de que apenas prosa de largo calado alcança valor literário. Leia-se o primeiro texto do livro. Nele se condensa, no seu diálogo com a obra de Marcel Duchamp, a partir de um “episódio” ficcionado com mestria, mais prazer de leitura que muitos romances que inundam as montras pelo natal.

A PORTA DE DUCHAMP

Quando vivia em Paris, no pequeno apartamento da rue Larrey, n.º II, Duchamp fez instalar dentro de casa uma porta que não podia estar nem aberta nem fechada porque estava sempre aberta e fechada ao mesmo tempo. Uma porta que ele abria quando a fechava (fechada mesmo aberta, como alguém disse acontecer com os livros) e que descolava da sua função de porta, como a palavra porta descola de qualquer porta se a dissermos duas vezes: uma porta-porta. A dele rodando entre dois umbrais e, por isso, incapaz de preencher um vazio sem abrir outro vazio. Duchamp tinha-a colocado ali para não esquecer que há em tudo uma parte de nada, um vão impossível de preencher sem que logo se abra outro mesmo ao lado. Mas desde então dormia mal, por causa dos gritos dessa porta, ao mesmo tempo concreta e abstracta, deslocada e infeliz como uma alegoria sem propósito. E quando não conseguia dormir, e se levantava às escuras para ir beber um copo de água, acontecia-lhe hesitar diante da sua invenção: «aberta, fechada?». Nessas alturas, se via que Duchamp ia enganar-se outra vez, a porta-porta mudava de posição e empurrava-o docemente para o lado do vazio. Além de gritar e ser didáctica, que mais pode uma porta para se fazer entender? Duchamp desaparecia então no fundo escuro da cozinha, e sempre dava consigo a pensar sem saber muito bem porquê que, talvez por estarem tão cheios de nada, os gritos da sua porta-porta lhe faziam afinal fraternamente companhia. Depois, no regresso ao quarto, hesitava novamente – «aberta, fechada?» – mas, com os braços um pouco adiante do rosto, atravessava agora o vazio a passos mais decididos.

MARTELO, Rosa Maria, “A Porta de Duchamp”, Lisboa: Averno, 2009. p. 7-8.

Marcel Duchamp, "The Bride Stripped Bare by her Bachelors, Even"


Isto é um ‘press-release’, sim senhores, Contra a Manhã Burra

Envia-me a Helena Viera, da Mariposa Azual, a seguinte informação, que transmito com muito gosto:

Miguel-Manso escreveu e editou CONTRA A MANHÃ BURRA em 2008.
A pequena edição de 250 cópias editadas pelo autor, esgotou rápida e surpreendemente.
Manuel de Freitas e José Mário Silva deram pelo caso e informaram das muitas razões
pelas quais devíamos prestar atenção a este livro.
Nuno Moura trouxe o texto à Mariposa Azual para que a palavra continuasse a circular.
A 2ª edição está disponível 5ª feira, às 21h, na associação crew hassan, Lx,
em ambiente de Festa.
apresentação do livro –  João Pacheco
leitura de alguns poemas pelo Miguel-Manso
e alguns temas originais do estreante grupo – Babilónia Reduzida.
'Bora lá de noite, de manso, contra a manhã burra'

'Bora lá de noite, de manso, contra a manhã burra'

Novos poetas (IV)

Manuel de Freitas


NADA DE NADA

para o José Carlos Soares

Um dia, logo de manhã, entraremos

num cemitério e perguntarás a Antonia

Pozzi se estar morto é mais ou menos

triste do que estes dias arduamente sepultados.

Receando que saibas a resposta, beberei

com Lowry a primeira ou a última tequila,

na certeza de que ambos os adjectivos estarão

certos (um pouco, talvez, demasiado certos).


Assim possa a chuva apagar todos

os versos que escrevemos

para nada, sobre nada, contra nada,

à sombra imensa dos jacarandás

que floriam – distraídos, quase por engano –

no Rossio. E inundavam de luz (nunca

vi uma luz tão escura) as portas

e os umbrais deste cemitério assim.

Manuel de Freitas, in revista Telhados de Vidro nº 7, p. 47, Averno, Lisboa, 2006

a slaughter of roses © rattus, Olhares, fotografia online

a slaughter of roses © rattus, Olhares, fotografia online

Novos poetas (II)

Outra voz. Manuel de Freitas. Poema publicado sob o ante-título BOA MORTE.

PONTA DO SOL

para a Inês

Havia um arco sobre o mar
e falésias onde o vento
doía muito. Tive medo
de encenar tão concretamente
a minha morte. O próprio restaurante
(lágrimas com bife do lombo)
avançava pela rocha dentro
numa espécie de resignação feliz
a um tempo menos capaz de ser tempo.

Mas chega a parecer ridícula
esta obstinação
de quem no mundo procura apenas
o inexistente fim do mundo.
Choravas, doutra maneira,
a juventude derrotada,
desatenta ao alarme das gaivotas
e que já nem o garrote da memória salva.

Manuel de Freitas, in revista Telhados de Vidro nº 1, p. 47, Averno, Lisboa, 2003

marcas-dagua-xxxvii © Carlos Azevedo Matos, Olhares fotografia online
marcas-d’água-xxxvii © Carlos Azevedo Matos, Olhares, fotografia online