As Folhas Ardem

a poesia do mundo. o mundo da poesia. incêndios e queimadas.

Etiqueta: Al Berto

Al Berto — [os dias sem ninguém]

 

os dias sem ninguém
pequeníssimos recados escritos à pressa
amachucados nos dedos

         foi bela a madressilva
         subindo pela noite da morada esquecida

pedras exactas poeiras perfumadas
bichos de lume dormitando na flexibilidade da argila
areias cobertas de insectos ossos dentes
e o rio por onde partem as noites de cansaço

luminosa floração luas ácidas despenhando-se
fendas de terra cidades costeiras pássaros
frágeis caminhos em pleno voo
durante a lucidez tremenda do sonho

restam-me os corredores de vidro
onde posso afagar os restos carbonizados do corpo
abro a porta que dava acesso ao rosto
desço os degraus musgosos do pátio
atravesso o jardim de alvenaria onde vivi
todo este tempo antes de me precipitar

 

Al Berto. O Medo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998

 

fotografia: Paulo Nozolino

Al Berto — recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer – vai por esse campo
de crateras extintas – vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo – deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração – ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna – o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira – não esqueças o ouro
o marfim – os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço

in Horto de incêndio, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997

 

 

Al Berto — Corpo

 

Corpo corpo
que te seja leve o peso das estrelas
e de tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa

abre a janela debruça-te
deixa que o mar inunde os órgãos do corpo
espalha lume na ponta dos dedos e toca
ao de leve aquilo que deve ser preservado

mas olho para as mãos e leio
o que o vento norte escreveu sobre as dunas

levanto-me do fundo de ti humilde lama
e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo

Al Berto, O Medo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998

 

fotografia de Marta Streng (D.R.)

Al Berto — A paisagem prolonga-se

 

a paisagem prolonga-se num S de flores azuladas

ela entra nas ruínas

junto ao ângulo penumbroso da casa destruída

está vestida de branco quando ele lhe fala

ambos têm o olhar vago

ela recorta-se sobre um fundo de árvores nuas

ele está de pé encostado a um muro de pedra

ouve-se alguém dizer: não tenhas medo
so

somos apenas actores dum sonho paralelo à paisagem

os lábios dela tremem ou sorriem

ele encolhe-se mais contra a parede

o silêncio ainda não os abandonou

ela espreita-o

ele desenha-se exacto no centro do écran

(de novo uma voz off)

um vento vertical adere à casa

onde as raízes dos cardos irrompem dos alicerces

e quando ela se vira para o interior das ruínas

prende-se-lhe o olhar num ponto inexistente

ele já ali não está

apenas a objectiva da câmara continua a segui-la

Al Berto, Trabalhos do Olhar, Lisboa: Contexto, 1982

 

 

«Window Ruin», Marcin © Marcin, via Deviantart (D.R.)

Al Berto – notas para o diário

“Aterrador foi ter-me apercebido o que havia neste livro de premonitório («Horto de Incêndio»). A eternidade não é lerem-me dentro de 50 ou 60 anos ou ficar na história da literatura portuguesa. “Só espero que meia dúzia de doidos me leiam agora e isso os toque.”Al Berto

notas para o diário


deus tem que ser substituído rapidamente por poe-
mas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis-
mo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu cora-
ção, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário – o paraíso sabe-se que chega a lis-
boa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no
cimo do mastro, e mandar arrear o velame.

é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem
cadastro.

a dor de todas as ruas vazias.

sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o
filme acabou. não nos conheceremos nunca.

a dor de todas as ruas vazias.

os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida – e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.


AL BERTO, “Horto de Incêndio”, Lisboa: Assírio & Alvim, 3.ª Ed., Dezembro 2000. p. 38-39

fotografia de Paulo Nozolino (pormenor da imagem de capa de "Horto de Incêndio")

Horto de Incêndio (Entrevista a Al Berto)

Em Março de 1997, o editor Manuel Hermínio Monteiro entrevista o poeta Al Berto, a propósito da edição daquele que viria a ser o seu último livro de poemas originais publicado, Horto de Incêndio. O poeta faleceria em Julho desse ano.

Horto de Incêndio
(Entrevista a Al Berto)

Manuel Hermínio Monteiro

Esta curta entrevista, com um evidente carácter de urgência, foi feita como complemento do seu último livro Horto de Incêndio. Não esperava tanta brevidade nas respostas. Hoje, parece-me, faz todo o sentido. Como julgo natural que a grande maioria dos leitores de Al Berto sejam jovens que viam nele a intensidade chispante de um cantor rock deambulando pelas noites de Lisboa com uma disponibilidade de dialogo e de corpo inexcedíveis. Por isso se nos torna difícil ver uma Lisboa tardia sem a sua presença, o seu sorriso e as suas histórias envolventes. Sem os seus textos para os catálogos de artistas amigos. As inúmeras leituras públicas sempre repletas de gente jovem, que acorria para ouvir o homem a quem «crescera uma pérola no coração». Mas quem melhor o conhecia era o mar e os barcos que «faziam escala à sua porta».
Outubro de 1997

1 – Há bastante tempo que não publicavas e no entanto este livro, até pelo título, tem um carácter de urgência. Porquê?

Telegrama 1: Todos os meus livros tiveram sempre um carácter de urgência. Porque ao terminar um livro nunca tive a certeza que um outro se seguisse. Cada um deles está intrinsecamente ligado a um momento da minha vida. A vida e os livros acontecem… Stop.

2 – Há os poemas «inferno», «sida», «febre», «fantasma», «senhor da asma». É um livro triste, trágico quase apocalíptico?

Telegrama 2: Não podia ser de outra maneira. Veja-se os tempos que correm, tempos de manipulação e de enxertia, tempos de metamorfose maligna e hipocrisia. Já não há cidadãos, mas contribuintes – o que quer dizer que o corpo foi substituído por uma série de algarismos. Stop.

3 – A segunda parte, «Morte de Rimbaud» foi dito em voz alta no Coliseu dos Recreios de Lisboa. Ao escreveres existe alguma vontade de que as tuas palavras sejam para ser ditas em voz alta?

Telegrama 3: Sempre defendi a oralidade. É uma tradição da poesia portuguesa. Não publico poemas sem os lerem voz alta muitas vezes. «Morte de Rimbaud» foi escrito propositadamente para o espectáculo Filhos de Rimbaud e para ser dito em voz alta. Tentei ser claro. Stop.

4 – Coloquiais e íntimos, poemas como pequenos segredos ou conversas afectivas. Esta tua poesia parece nascer da necessidade de uma confidência. A poesia é feita para todos?

Telegrama 4: Se calhar é porque toda a minha escrita é um dialogo comigo mesmo… Uma viagem em direcção ao silêncio. Não sei… Não. A poesia não é feita para ninguém em especial, mas uma vez publicada é para quem a lê. Talvez este livro seja um livro para ler também em voz alta. Stop.

5 – O que é que a tua vida deve à poesia?

Telegrama 5: A poesia tem-me levado ao despojamento daquilo que é lixo e me atrapalha a vida. Cada vez mais me parece que a poesia é a única linguagem capaz de atingir o rosto de um deus e feri-lo moralmente, nem que fosse por um milésimo de segundo. Stop.


In Hablar/Falar de Poesia, n.º 1, 1997

Al Berto

Poesia Portuguesa (17) – Al Berto

é tarde, meu amor


é tarde meu amor

estou longe de ti com o tempo, diluíste-te nas veias das marés, na saliva de meu corpo sofrido

agora, tuas máquinas trituraram-me, cospem-me, interrompem o sono

habito longe, no coração vivo das areias, no cuspo límpido dos corais…

a solidão tem dias mais cruéis


tentei ser teu, amar-te e amar o falso ouro… quis ser grande e morrer contigo

enfeitar-me com as tuas luas brancas, pratear a voz em tuas águas de seda… cantar-te os gestos com

[ternura

mas não


águas, águas inquinadas pulsando dentro do meu corpo, como um peixe ferido, louco

em mim a lama… e o visco inocente dos teus náufragos sem nome-de-rua, nem

[estátua-de-jardim-público

aceito o desafio do teu desdém


na boca ficou-me um gosto a salmoura e destruição

apenas possuo o corpo magoado destas poucas palavras tristes que te cantam

Al Berto, in, O Medo (Trabalho poético, 1974 – 1990) , Livro Quarto – Trabalhos do olhar, Assírio & Alvim, Lisboa, 1991

© Paulo Madeira, Olhares, fotografia online

© Paulo Madeira, Olhares, fotografia online