Da criatura número cinco

by manuel margarido

imagem promocional da revista © revista criatura (D.R.)

 

 

No seu número cinco, a revista criatura atinge uma maturidade e coesão sem paralelo nas revistas literárias que se publicam actualmente; afirma-se de forma segura como a mais significativa publicação dentro do género neste início de década. Ao referir maturidade, explicite-se que, entre os catorze poetas escolhidos e incluídos neste número, não há algum que escreva inutilmente; que não se encontram aqui poemas duvidosos; e em vão se procurarão fragilidades evidentes.

A ideia de coesão não pressupõe uma qualquer corrente literária geracional –não me parece útil falar de geração nem de gerações num tempo em que a escrita poética se fragmentou em vozes que se movem na singularidade. Contudo, é a selecção dos autores e dos poemas que estabelece uma afinidade, possível de identificar e enunciar por um acentuado antilirismo; em simultâneo, pela frequente utilização do real, das marcas do tempo e dos lugares como matéria poética; formalmente, por um «desejo de narratividade» por vezes quase explícito, que é perceptível em alguns autores (Diogo Vaz Pinto, mas também Rui Pedro Gonçalves, Tiago Araújo).

Talvez o dístico de David Teles Pereira (autor dos melhores poemas da revista), que ao princípio me pareceu exógeno e fácil, seja afinal o resumo do programa inerente à selecção e escolha dos autores e poemas: (A poesia é como as ovas de ouriço-do-mar / sabe melhor com um pouco de acidez).

Esta acidez, presente, por exemplo, nos três poemas de Margarida Vale de Gato (em torno da questão do género, desconstruindo os lugares comuns do quotidiano), é também marcante nos poemas de Roger Wolfe (Os poemas? / Alguns funcionam, / outros não. / Se o que queres / é uma garantia, /então compra um televisor.). O que nos remete para outro aspecto comum a muitos dos autores publicados: a dessacralização do poema, do acto poético, da figura do poeta enquanto entidade de excepção (nesse sentido são particularmente notáveis os poemas de Luís Filipe Parrado, um autor que apenas por desejo próprio, imagina-se, não tem ainda obra publicada em livro, que eu saiba); Ainda os seis poemas em sequência de Jaime Rocha, partindo de uma linguagem quase descritiva, procuram justamente uma imposição da aparente naturalidade das coisas para produzirem um resultado poético (…) Nada / distingue as ruas de um grande / vale de narcisos).

A recusa da transcendência da escrita poética, o deliberado apagamento de uma estilística (presente nos dois poemas de Luís Pedroso) revela-se plenamente na temática, na semântica abertamente coloquial dos excelentes poemas de Jesus Jiménez Dominguez, que, com Roger Wolfe, abrem a revista para fora do âmbito dos autores portugueses (e ainda bem).

Da criatura cinco não se poderá falar de niilismo, de uma poética do desencanto, ou da resignação ao questionamento do real, externalizado ou existencial. Não há aqui um discurso comum, mas uma expressão de contemporaneidade, que não esgota o que se escreve actualmente no domínio da poesia (longe disso) mas reúne coerentemente trabalhos de autores que têm programas de escrita com as afinidades referidas.

O que não deixa de tornar excepcional (porque de uma excepção se trata) a abertura da revista com um conjunto de  poemas de Muhammad Abdur Rashid Ashraf (António Barahona), autor de longa obra poética, que nos cinco poemas publicados (sendo um deles um tríptico) estabelece um poderoso diálogo entre o lirismo amoroso / erótico e a espiritualidade, em poemas de grande solidez formal, fruto de uma mão poética cheia de saber, ofício e sonho.

Não representando escola, nem corrente, a criatura torna-se, neste número cinco, um possível cânone para reconhecimento futuro de muita da nova poesia portuguesa. Um notável labor de selecção e escolha que (se) define. Nele é legítimo pensar  que estaremos perante alguns dos poetas que deixarão marca nos anos que estão para vir.


(transcreve-se aqui um poema de Luís Pedroso, a que se seguirão dois ou três posts com alguns poemas de que mais gostei, a título de divulgação da revista)


O Evangelho Segundo Santo Agostinho


Detesto a arquitectura das teias

e o desaparecimento dos lugares

que os antigos marcavam para esperar a morte


Hoje não a esperamos em campos de batalha

nem em monumentos seculares

Mas em pouco mais, talvez, que na ameaça de um Domingo


«Monument», Owain Roger © Owain Roger, via Deviantart, (D.R.)