No meio de uma sala, uma gaiola dourada com uma mulher lá dentro. Cheira a cera e os mosaicos negros e brancos do chão brilham. Mas não reflectem o tecto. O que estará por cima.
Veste apenas lingerie, a mulher. Não se consegue ver a cor da roupa porque as janelas estão quase fechadas e há cortinados de tule, cobertos de pó, na sua frente. Sombras, no chão aos quadrados.
O cheiro de rosas sobe até à mulher que aproxima as mãos da cara e aspira.
Olha as flores fanadas sobre as costas da mão e pergunta porquê. Tem também jarros brancos, a amarelecerem nas pontas enroladas. As curvas elegantes e lascivas das suas copas a cobrirem-se de manchas amarelas e castanhas. Morrem flores nas mãos da mulher e é esse cheiro que a entristece.
“Vou pensar numa coisa boa, boa”, diz a si própria. Repete o ritual de meditação a que se forçou nos últimos anos: uma praia, as areias amarelas, o sol quente sobre a pele acabada de sair da água. Enterra os dedos e sente os grãos, a passar entre eles. Repara que tem os cabelos fora da toalha, mas não se recolhe. Um movimento agita a areia quente, agora, desagradavelmente quente, e um pequeno escaravelho preto sai do nada, caminhando na direcção do seu corpo. Faz-lhe cócegas, o insecto escuro sobre a pele, um pouco enrugada. Das suas costas vem uma voz a rir, que não consegue ver. é a de uma rapariga. Está a rir-se e provavelmente a mover os braços. A pele firme dos braços. A suavidade dos braços. A mulher não a vê, mas sabe que um homem tem as mãos sobre esta pele que apenas adivinha.
“Asso”, e levantou-se em direcção às dunas.
Quase só silêncio, naquela sala. No chão da gaiola dourada, acumulam-se cascas de sementes. Comeu-lhes, uma a uma, o núcleo branco, doce. Quase sem dar por isso. Estão secas, as cascas, e rangem debaixo dos seus pés descalços.
Por cima da casa, passam corvos negros. Rodam, afastam-se, quase tocam as telhas rosa-velho e laranja, o musgo e o arroz-dos-telhados.
“CRRRÁÁÁÁÁÁÁ”, gritam, por cima do edifício, da gaiola e da mulher que nesse preciso instante pensa que são quase sete horas e o marido não dá sinais.
Mas engana-se. Ele acaba de entrar. Pousa a pasta.
“Hoje, uma das empregadas desatou a gritar com um utente. Não sei o que lhe disse ou fez o homem para provocar aquela reacção. Coitado, ainda tentou travá-la, evocar direitos. Mas ela parecia um bicho, por um instante. Apenas um instante. Depois, desfez-se em lágrimas, claro. Pediu-me desculpa, que não sabia o que lhe tinha dado.”
Tirou a gravata e largou os sapatos num canto. Na cozinha, bebeu água, de um copo largo, impecavelmente limpo.
“Tive pena dela, coitada. Tão nova ainda. Não percebe.”
Os seus olhos brilharam, por um instante. O cheiro das meias, estreadas nessa manhã, entrou na gaiola. A mulher conteve, já sem dar por isso, a respiração.
“Encorajei-a entender melhor as pessoas. As necessidades delas. Aquilo que às vezes nos parece um abuso e que não é mais que um gesto de alguém que precisa da nossa atenção. Coitado de quem é novo.”
Desapertou o cinto e foi mudar de roupa ao quarto.
Na sala a mulher tremeu um pouco.
“Estou numa praia, ao lado de um barco de pesca virado ao contrário. Cheira a madeira húmida e a restos de peixe seco, e é natural que assim cheire. Se levantar a cabeça consigo avistar as silhuetas dos pescadores, muito ao fundo, a fumar e a lamentar a vida. O vento sopra quente.”
A lingerie estava encharcada em suor. Junto às raízes brancas do cabelo, pequenas gotas.
“O vento sopra quente, a areia escalda”, pensou. Do quarto, a voz do marido ao telefone. A mulher toca nas frades da sua gaiola dourada, agora vermelhas, em fogo, e descobre-as frias.
Um corvo pousa sobre o algeroz e apanha o papel com o bico.
HISTÓRIA DO HOMEM-CORVO:
No meio de um terreno de cultura, semeado regularmente com trigo, existia um espantalho, feito de uma cruz de paus secos. Estava vestido com um casaco velho e um lenço que tinha pertencido à mãe do dono do terreno. Por cima, a fazer de cabeça, um nabo gigante, comido aos poucos por pássaros, insectos e até pequenos mamíferos, que subiam pelas roupas acima, e voltavam com restos do tubérculo nos dentes. O nabo estava coberto por um chapéu de palha e era dentro deste que vivia um homem-corvo. Quentinho e protegido, debaixo do chapéu dos outros.
Era boa pessoa. Isto é, não chateava. Tinha lido os clássicos, antes do tempo. Tratava por tu o Joyce, o Musil, o Borges, e mais recentemente o Raduan Nassar (de quem gostava mais do nome que da escrita).. Onde ia buscar os livros não se sabia. Apenas que os lia, em silêncio, dia após dia, ano após ano. No meio desta concentração esquecera-se até de acasalar. Acordava em algumas noites de Primavera, aflito, sem saber porquê. Mas no dia seguinte, já se tinha esquecido e mergulhava de novo na leitura, saindo apenas para comer alguma coisa que rastejasse pelo chão ou para renovar a sua biblioteca.
“Não sabem o que perdem”, dizia ele aos outros animais, que passavam perto. Tinha deixado crescer uma barbicha oitocentista e, em virtude dos olhos cansados, roubara uns óculos a um velho adormecido à espera de uma camioneta de carreira que tardava. “Sabem lá a alegria que dá ler uma frase como esta: “O poeta celta Taliesi diz que não há nenhuma forma no universo que não tenha sido a sua”?. Mas as formigas não lhe ligavam, os melros cruzavam-se no ar, apenas contentes, um pouco mais à frente, o agricultor que desconhecia a sua existência, continua a lavrar a terra. “Pobres ignorantes”, pensava.
Como, apesar de tudo, isto lhe deixava um sabor amargo no bico, decidiu um dia começar a escrever, usando tudo aquilo que tinha lido. Repetindo a ideia testada, a frase certa. E quando fez isso, alguns animais vieram ter com ele. As ovelhas abriam a boca de espanto, as vacas sustinham o ruminar por um instante, uma ave tonta pousava ao lado, piando de vez em quando, “É genial!”. O homem-corvo ficou contente. Não é preciso muito para deixar contente quem nunca tinha tido nada, e continuou na sua escrita-leitura e na sua leitura-escrita.
Os dias passaram. e as vacas que pareciam escutá-lo foram cortadas em tiras de carne escura, a pele a forrar cadeiras. Antes delas, as ovelhas tinham levado um tiro sobre o crânio e o ar que ali vivia juntara-se à estratosfera das coisas vazias. Enquanto a barbicha do homem-corvo embranquecia, as coisas que julgara conhecer morreram todas. Sobrou o campo, o lavrador cada vez mais velho, o clima que se tornava caprichoso, as dores junto às unhas das patas finas. No seu quinquagésimo aniversário, o homem-corvo tirou a cabeça fora do chapéu onde vivia, olhou os campos que nesse ano não estavam semeados, e percebeu que não lhe restava tempo para começar a viver.
Desceu do espantalho, enterrou os pés na terra e, quando começou a chover, virou o bico aberto para cima. Só depois caiu, as asas abertas em cruz para que o vento as movesse tanto tempo quanto possível.
No cimo de uma casa, um corvo levanta voo. Por baixo, uma gaiola com uma mulher lá dentro. À sua volta, os mosaicos grandes, brilhantes e estéreis cheiram a cera. Está na penumbra, esta sala.
Cachapa, Possidónio in, «Egoísta n.º 50», Estoril: Estoril-Sol (III) — Turismo, Animação e Jogo, S.A., Junho 2008
(post reeditado)
[Nota: a reprodução integral deste texto de Possidónio Cachapa é um acto ilícito, de acordo com os termos fixados pela publicação. Ao transcrevê-lo, na íntegra, a partir da edição comemorativa do quinquagésimo número da mesma, ponderei duas ordens de razões: nos meios literários, e culturais mais elitistas no nosso burgo a «Egoísta» não “conta”; não é referida, mencionada, o seu lugar significativo, original, na divulgação das artes e das letras que se produzem em Portugal e noutros países não são (ou serão muito raramente) referenciadas, tal como as suas edições, os autores, a qualidade gráfica (creio que tal facto se deve a um preconceito absurdo quanto à origem e à natureza do negócio do publisher , o que é uma característica de saloios). Por outro lado, não tive capacidade ou coragem para cortar um «excerto» deste fascinante texto de Possidónio Cachapa, a título de citação. Resta-me pedir toda a indulgência possível a Mário Assis Ferreira (director, que deu asas a este singularíssimo projecto), à Patrícia Reis (editora, de irrepreensível criatividade e acerto). E parabéns igualmente ao projecto gráfico (Henrique Cayatte) e ao Possidónio Cachapa, evidentemente. Para que conste, farei chegar ao conhecimento dos primeiros e ao autor do texto esta transcrição.]
(já depois de transcrito o texto, quero agradecer à Patrícia Reis e ao Possidónio Cachapa, editora e autor, a sua permissão e generosidade)
«Scarecrow» — Igor © Igor, via Deviantart (D.R.)
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