António Ladeira — Há anjos

 

 

«where the angels float», Nuxk © Nuxk, via Deviantart, (D.R.)

 

Há anjos

à memória de Mário Cesariny

 

Há anjos

que não compreendem o que dizemos

que não compreendem o próprio sentido

das palavras que, incessantemente, repetem

da esperança universal de que têm de nos convencer diariamente.

 

Há anjos que ressonam como foles

que andam cansados porque estão acordados há séculos

que precisam de ser transportados às costas

alimentados intravenosamente

protegidos da ferocidade do mundo.

 

Há anjos que lêem livros

anjos que escrevem poemas.

 

Há anjos que deixaram crescer a barba

que gostam de se deixar adormecer pelo comovente murmurar

das barbearias.

 

Há anjos que acabaram de nascer

que têm nomes vulgares

que viajam de avião

que até gostam de aeroportos.

 

Há anjos secretamente apaixonados por fadas,

por longos rios cheios de luzes

por súbitos glaciares.

 

Há anjos que são subcutâneos.

 

Há anjos que estão sempre com febre

que são ingénuos como enigmas.

 

Há anjos que vivem em arranha-céus,

que trabalham em andaimes

de onde às vezes se precipitam de propósito.

 

E há anjos que são funâmbulos.

 

Há anjos que talvez nos surpreendam

que às vezes nos saúdam, disfarçadamente, por entre a multidão

que abrem os olhos de noite.

 

Que, na sua voz interrompida, mutilada,

pedem calma.

 

Pedem muita calma.

 

Ladeira, António, in “RESUMO, a poesia em 2010″, Lisboa: Assírio & Alvim, 2011, pp.19/20

[originalmente publicado em Relâmpago/26, Lisboa: Fundação Luís Miguel Nava, 2010]

 

«yesterday», Corbin K. Zahrt © Corbin K. Zahrt, via Deviantart (D.R.)

 

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