Gonçalo M. Tavares – Sobre as origens (pouco visíveis) de um suicídio

 

De certa forma esta é uma espécie de acto de contrição: tendo sido um dos que me insurgi contra o afastamento de Joana Morais Varela da Direcção da «COLÓQUIO Letras», e não retirando uma vírgula às virtualidades e especificidades que a mesma imprimiu à revista literária mais importante que se publica em Portugal, verifica-se que, sob a direcção de Nuno Júdice, na «COLÓQUIO» cumpriu-se a promessa de regresso à regularidade de publicação que se havia de alguma forma perdido (note-se que desde o ano de 2000 até 2009 saíram nove números, com um hiato de cinco anos entre 2004 e 2009, quando tomou posse a nova equipa, a qual já publicou sete!). Sem grande desvirtuação na qualidade do conceito gráfico (que é agora bastante mais sóbrio, sem o aparato requintadíssimo que chegou a possuir, mas ainda de um bom-gosto dificilmente discutível), é visível, após os dois números consagrados a Eduardo Lourenço, a tendência para, mantendo um tema (autor) principal, abrir a revista a um espectro de artigos, colaboradores e abordagens mais amplo, com uma forte incidência na «recensão crítica», uma atenção, que parece tendencial, ao campo da poesia e uma selecção de originais — embora irregular de edição para edição — com critérios mais largos, inclusivos e «aggiornati». Poesia, Ficção, Crónica, Entrevista parecem poder ocupar um lugar mais relevante, nesta nova fase da vida da «COLÓQUIO». Do seu número 173 se transcreve aqui, com a devida vénia e a título de divulgação, um texto ficcionado de Gonçalo M. Tavares. [Note-se que em nenhum lugar da revista, desde o número 170, encontrei qualquer referência à protecção de direitos de autor, o que só pode ser manifestamente lapso, para o qual se chama a atenção.]

 

Sobre as origens (pouco visíveis) de um suicídio

UM HOMEM com vocação para encontrar o nada em qualquer sítio pede ajuda a outro homem.

Fala-se, pois, de dois homens. O homem com vocação para encontrar o nada em qualquer sítio (um) pediu ajuda a um segundo homem (dois). Pediu-lhe, em suma, que fizesse algo divertido, que demonstrasse uma qualquer habilidade — colocar o pé atrás do próprio pescoço, fazer barulhos estranhos com a garganta, imitar animais através apenas do movimento dos olhos, enfim, que ele, este segundo homem, fizesse algo, uma habilidade qualquer, uma declamação, que conseguisse colocar o pé atrás do próprio pescoço, que conseguisse imitar animais através apenas do movimento dos olhos, qualquer coisa, mas que o convencesse, enfim, de que aquele sítio que era ele — pois uma pessoa por ser pessoa não deixa de ser sítio, de ocupar espaço, de ter altura, comprimento e volume — que conseguisse enfim mostrar a esse homem com vocação para encontrar o nada em qualquer sítio que ele, o segundo homem, teria algo dentro de si mesmo, e portanto nele, pelo menos, neste segundo homem, o homem com vocação para encontrar o nada em qualquer sítio não encontrará o nada que tanto está habituado a encontrar.

Pode revistar-me à vontade — poderia dizer o segundo ao primeiro homem, se este texto entrasse claramente na ironia.

Mas ainda não nasceu — como se diz nos momentos de grande e definitivo elogio — o homem capaz de sair à rua e dizer a quem passa:

— Podem procurar à vontade, dentro de mim não encontrarão o nada. Tudo em mim está ocupado e tem sentido. Em mim, nem o homem com vocação para encontrar o nada em qualquer sítio encontrará esse tal nada.

Ainda não nasceu, pois, homem que em público possa falar assim.


 

Tomo banho, escovo-me bem, ensaboo-me da ponta dos pés à cabeça, passando pelos órgãos mais íntimos. Seco-me com uma toalha e mesmo assim não consigo: algures, em mim, o homem com vocação para encontrar o nada em qualquer sítio encontrará esse bocado de nada que o facto de nascer e ter uma certa percepção do mundo me deu direito e o dever de não largar.

Faço ainda como vi em filmes: sento-me num banco de jardim, isolado, olho para todos os lados para ver se alguém me vê e, depois de confirmar que estou sozinho e sem vigilantes, tiro — do bolso de uma camisa — um saco de plástico vazio e ali o deixo, só, vazio, e sem sentido, em cima do banco do jardim — para de imediato ser levado à força pelo vento que, embora quase inexistente, tem força sempre para arrastar um saco de plástico que nada guarda dentro de si. Mas tal exercício não basta para o que pretendia; não é assim que me liberto do nada que existe no sítio que sou enquanto animal com volume; e esse saco vazio pode ser conduzido como um veado cego pelo jardim da cidade, batendo imprudentemente contra as árvores, caixotes do lixo e outros obstáculos, bem pode essa simulação do meu nada que simulei atirar borda fora como se o corpo fosse um navio, e o mundo alto mar, e o saco vazio fosse a parte que em mim não me deixa ter um sentido para todas as coisas, bem pode essa simulação do meu nada avançar por empurrões sucessivos para o lado oposto onde me encontro agora, que jamais serei capaz, diante do homem com vocação para encontrar o nada em qualquer sítio, de não tremer, de não ficar assustado, e perante a mera indicação para levantar os braços não os levantar de imediato e pedir perdão: sei que continuo com um bem localizado nada a montar e a desmontar consecutivamente tenda algures nesta parte mais débil deste meu organismo que uma mulher um dia, por descuido ou ilusão de apaixonada, chamou de belo corpo acima da terra. E nestes dias em que me sinto caminhar ao lado das toupeiras e com elas fazendo a melhor das amizades, eis que relembrar palavras simpáticas de uma mulher  me faz cair ainda mais, e soterrado, finalmente, por completo, sei que só se a morte me esconder mais ninguém, por mais que vasculhe, encontrará essa ponta do nada em que começou a minha depressão e em cujo centro a minha firme vontade de morrer se foi construindo, sólida e tranquila, como a construção sem pressas de uma casa.

Tavares, Gonçalo M., in COLÓQUIO Letras número 173, Janeiro / Abril 2010

«Just a Plastic Bag», Michalina © Michalina, via Deviantart (D.R.)

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